Se tem algo que você precisa saber sobre mim, é que nasci já pertencendo à mesa dos adultos. Pode perguntar para o meu primo André: ele é um ano mais velho do que eu e vai te dizer que pulei a etapa da mesa das crianças nos almoços e jantares de família. É como se eu tivesse saído da barriga da minha mãe segurando na mão o ingresso para o assento vitalício na mesa dos grandes.
A brincadeira (como sempre) tem um fundo de verdade. Sempre amei a conversa dos adultos: as fofocas e as histórias, as dicas de filmes e as discussões sobre política (numa era em que o não concordar não era ainda sinônimo de tantas divisões e olhares tortos). Eu prestava atenção em tudo, como se cada fala daquele diálogo caótico guardasse em si a promessa de entender o mundo de uma vez por todas. Surgiam às vezes perguntas absurdas, como se estivéssemos em um filme do Woody Allen: Quantos judeus será que morrem por ano em São Paulo? Todo mundo parava de comer e começava a calcular. Como se alguém soubesse o que estava fazendo.
Eu esperava o momento em que cada um dos meus tios começaria a contar os feitos dos meus primos - logo chegaria a vez da minha mãe e eu poderia exibir as minhas notas e contar das minhas leituras sem vergonha de assumir o protagonismo temporário na mesa.
Não pense que eu não sentia nem uma pontinha de inveja da mesa das crianças. Lá as brincadeiras rolavam soltas e as piadas do André faziam todos cair em gargalhadas periódicas - ele sempre foi o mais engraçado da família. Ele fazia imitações, provocava todo mundo e era (e é) peça fundamental da nossa hilária dinâmica familiar. Na mesa das crianças tinha mais refrigerante e eles repetiam a comida quantas vezes quisessem. Já entre os grandes, ninguém falava mal das professoras nem contava histórias escabrosas dos colegas de escola. Ainda assim, eu amava meu lugar honorário de mini-adulta-da-família.
A coisa ficou ainda mais acentuada quando entrei na faculdade de Jornalismo e depois comecei a trabalhar como estagiária em uma redação. Passei a ter opinião sobre tudo e trazer pontos de vista diferentes. Eu amava o posto de sabichona. Todo mundo prestava atenção no que eu falava e aquilo era um valor em si. Não havia conto sobre alguma balada na mesa dos meus primos que me convenceria a querer abrir mão daquilo.
Neste último fim-de-semana, celebramos o Rosh Hashaná, o ano novo judaico. Eu sabia, na hora em que fui cumprimentar meu primo, que lá vinha a provocação sobre a mesa dos adultos, a nossa versão familiar do é pavê ou pácomê. Cada um agora com as filhas a tiracolo e a noção de mesa das crianças já meio turva em meio aos primos adolescentes filhos de um tio temporão, os sogros de cada neto e as bisnetas que não querem comer longe dos pais. Já não nos dividimos nas mesas daquele jeito antigo. Neste ano, o André se sentou com sua esposa e filha na mesa principal com nossa avó e tios e eu fiquei em uma secundária, com meus sogros, filha e marido. Ainda assim, ele veio brincar. Talvez a mesa dos adultos seja simplesmente aquela onde me sento.
No domingo, enquanto me recuperava da maratona de dois jantares familiares e todos aqueles pratos que são a encarnação gastronômica da minha memória afetiva, encontrei em um livro inesperado uma pista para explicar essa história toda de mesa dos adultos. Conta Irene Vallejo em O infinito em um junco:
"Em todas as sociedades que utilizam a escrita, aprender a ler tem um pouco de rito iniciático. As crianças sabem que estão mais perto dos mais velhos quando são capazes de entender as letras. E um passo sempre emocionante em direção à idade adulta."
A criança que vai para a mesa dos grandes é aquela que quer fazer parte daquele mundo adulto. O fato de eu ser a rata de biblioteca oficial da família só contribuiu para assegurar o meu lugar.
Eu me lembro da sensação de poder que me inundou no dia em que consegui ler as minhas primeiras palavras sozinha. Era um domingo à noite e estávamos todos na sala, assistindo Os Trapalhões, enquanto a minha mãe folheava a Veja. Foi como se um quebra-cabeça ficasse subitamente óbvio: V E J A. Eu ria e pedia para a minha mãe me mostrar mais e mais palavras. Aprender a ler foi um passo histórico na minha cabecinha - e desde então, não quis mais parar.
Eu queria os dois: ser adulta e ler. Meu sonho era entender tudo o que estava sendo discutido na tal da mesa dos adultos para, um dia, poder opinar. Depois dos almoços de domingo, na volta para casa, abria o baú de palavras que havia colecionado durante a refeição e metralhava os meus pais. Pai, o que é congelamento de poupança? Inflação? Mãe, como alguém troca de esposa?
Pertencer à mesa dos adultos era como participar da escrita de um livro que revelava em si a promessa de entender o mundo. O lugar onde um dia eu viveria, no qual meu posto daria direito não apenas a ouvir, mas também falar e trocar histórias engraçadas das amigas da minha avó e criticar os novos planos econômicos. Era como um passaporte - um espaço que eu só ocuparia se lesse cada vez mais.
Talvez esteja certa a minha intuição sobre a mesa dos adultos ser também o lugar das crianças que amam ler - ou talvez esta tenha sido uma conclusão influenciada por tantos pratos de gefilte fish. Pode ser apenas uma racionalização para um gosto que tenho certeza que compartilhei com tantas outras crianças por aí. Sei, no entanto, que rende uma boa pauta para o próximo jantar familiar. Tenho certeza que o André vai morrer de rir.