Como a arte nos transforma
Edição #265: Viagem à Itália, Donna Tartt, Stendhal, Harold Bloom e uma conversa genial com a Gisela Gueiros
Talvez não tenha sido uma coincidência ter escolhido o livro O pintassilgo, de Donna Tartt, como leitura de férias da minha viagem para a Itália. À primeira vista, não conseguia encontrar nenhum ponto em comum: um menino nova-iorquino que sobrevive a um ataque terrorista que vitimou sua mãe. Theo se apega a um quadro - o favorito dela: O pintassilgo, do mestre holandês Carel Fabritius.
Eu estava morrendo de vontade de lê-lo há anos, desde que terminei A história secreta, da mesma autora. Mas nunca tinha tempo de encarar este pequeno tijolo de mais de 700 páginas. Enquanto pensava qual seria o acompanhante perfeito para esta viagem, lembrei dele. Não sei nem direito porque. Aquele momento parecia uma oportunidade perfeita.
Quando meu avião pousou em Florença, eu já estava mais do que envolvida com a história de Theo. E no momento em que senti o choque louco de ver as obras que povoam as galerias da cidade, entendi o motivo: O pintassilgo é, entre vários outros temas, um estudo sobre as formas com que a arte nos transforma.
Assim que deixamos as malas no hotel e comemos uma bisteca fiorentina, quis correr para conhecer a Galleria Uffizi. O palácio de quase quinhentos anos abriga uma das coleções mais fantásticas de obras do Renascimento. Foi construído para ser o escritório de Cosmo I de Médici, o duque de Florença. Após o fim da dinastia Médici, uma das famílias mais ricas e poderosas da história, o palazzo e todas as obras foram doados à cidade: um oceano de Caravaggios, Michelangelos, Canalettos e Botticellis.
Eu sonhava com aquela visita havia anos. Apesar de ser uma fã de arte moderna e contemporânea, sempre amei o Renascimento. A ideia de que a arte e a ciência conseguiram se libertar da pressão da Igreja e passarem por um período de expansão, de inovação, de extrema criatividade e novas técnicas me encanta. Galileu, Leonardo da Vinci, Ticiano. Um presente para o mundo.
A Galleria é enorme. Sala após sala recheadas de tesouros, com afrescos no teto, um sonho. Mas o que eu realmente queria ver eram dois quadros: O nascimento de Vênus e A primavera. Na hora em que entrei na sala e dei de cara com as duas obras, não teve jeito: lágrimas nos olhos, um arrepio na alma. Eu não imaginava que eram tão grandes. Com uma vida tão própria. Uma beleza tão perfeita.
Ao visitar, no dia seguinte, a Galleria Dell Academia para ver o David de Michelangelo, a minha reação foi ainda mais forte. Perdi o fôlego, precisei me recompor por alguns segundos antes de conseguir andar até ele e vê-lo de perto. Um soco no estômago - o melhor da vida. David é colossal, mede 5,17 metros e transpira perfeição. Um ideal de beleza, masculinidade, força e liberdade esculpido em uma única pedra de mármore. O impacto dele é imensurável.
Impossível não lembrar da Síndrome de Stendhal, também conhecida como Síndrome de Florença. Ao visitar a cidade, o escritor francês passou mal. Hoje é conhecida como uma doença psicossomática: o coração acelera, a pessoa sente vertigens, desmaia e chega até a alucinar ao ver ao vivo obras de arte de valor incalculável.
"Eu caí numa espécie de êxtase, ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… Tudo falava tão vividamente à minha alma… Ah, se eu tão-somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam de 'nervos'. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair.” (Stendhal)
Saí de lá em choque. Postei as fotos nos Stories e engatei numa conversa com a
. "Não é à toa que a coisa vira clássico, né?" ela disse. Falamos como o tempo e a idade nos ajuda a apreciar e valorizar ainda mais estes momentos de beleza. As vantagens de envelhecer: a arte me toca mais a cada dia.A Gisela disse algo lindo, sobre ir ao Met, em Nova York, onde ela mora, e se sentir entrando num templo. "Fico pensando que ali a gente reencontra história em primeira mão. É um pedaço do tempo que ficou marcado naquela pedra, naquela tela, e que tem capacidade de ainda estar aqui hoje nesse tempo."
Essa fala dela ressoou muito com uma passagem de O pintassilgo:
“People die, sure,” my mother was saying. “But it’s so heartbreaking and unnecessary how we lose things. From pure carelessness. Fires, wars. The Parthenon, used as a munitions storehouse. I guess that anything we manage to save from history is a miracle.” (Donna Tartt, grifo meu)
Um dos personagens mais queridos do livro é o Hobie, um restaurador de móveis antigos. Ele fala sobre como os objetos belos, as obras de arte, nos conectam com uma Beleza superior e abrem com força nosso coração.
"If a painting really works down in your heart and changes the way you see, and think, and feel, you don’t think, ‘oh, I love this picture because it’s universal.’ ‘I love this painting because it speaks to all mankind.’ That’s not the reason anyone loves a piece of art. It’s a secret whisper from an alleyway. Psst, you. Hey kid. Yes you.”
O impacto que cada obra de arte tem em nós é individual. Cada um de nós vê algo único, que fala com nossas próprias histórias, valores e jeitos de ver o mundo. Mas ao apreciar um quadro como O nascimento de Vênus, fazemos parte de uma linhagem de séculos de história de pessoas que se apaixonaram por ele tanto quanto nós - cada um do seu jeito.
"It’ll never strike anybody the same way and the great majority of people it’ll never strike in any deep way at all but—a really great painting is fluid enough to work its way into the mind and heart through all kinds of different angles, in ways that are unique and very particular. Yours, yours. I was painted for you.
O crítico literário Harold Bloom fala algo nesta linha sobre literatura que vale para toda forma de arte. Segundo ele, um livro se torna um clássico não apenas por ter sobrevivido ao teste do tempo, mas também por ter influenciado e inspirado futuros autores. Segundo Bloom, os clássicos são criados por um processo de misreading: uma leitura errônea, individual, em que outros escritores interpretam o texto original cada um da sua forma para criar algo original. A leitura que cada um faz do livro é o motor da criatividade da humanidade.
O pintassilgo, apesar de ter sido inspirado por um quadro holandês, foi um companheiro ideal da minha viagem italiana. A cada museu, galeria ou igreja que entrávamos, a minha reação conversava com a obsessão de Theo com o quadro.
A arte nos transforma. O contato com essa beleza abre nosso coração. Ao testemunhar essas obras que sobreviveram aos séculos, fazemos parte de algo maior. Aprender a apreciar e a amar cada vez mais as obras de arte é um presente que deixa a vida melhor.
Na próxima edição, fechada para assinantes, resolvi compartilhar uma pequena coleção das obras que mais me tocaram nesta viagem. Fui à Bienal de Veneza, vi os clássicos do Renascimento em Florença, uma verdadeira imersão artística. Para conferir, não deixe de migrar para o plano pago.
Que honra ser citada num post tão inspirador! Amei a conexão com a frase do livro da Donna Tartt — é mesmo um milagre que essas coisas estejam aqui❤️ obrigada!
amei esse trecho:
"Aprender a apreciar e amar cada vez mais as obras de arte é um presente que deixa a vida melhor. A arte nos transforma". aprender a apreciar é tão sutil, é maravilhoso. não se trata de entender. é algo do campo sensível. é pra sentir. sentir é a melhor coisa do mundo! E você traduziu isso muito bem.