Como ser um aliado
Edição #289: Um comentário antissemita nesta newsletter e o livro Uncomfortable Conversations With a Jew
Segunda-feira foi um dia de luto, daqueles que doem na alma e as lágrimas ficam engasgadas. Não consegui abrir direito o Instagram: meu feed estava inundado de homenagens aos mortos, vídeos do massacre, fotos de salas de aula cheias de bebês assassinados no 7 de outubro. Mulheres com as calças cheias de sangue. O ataque do Hamas completou um ano e a dor de um povo inteiro está longe de acabar.
Na semana passada, publiquei uma edição aqui na newsletter desejando a todos Shaná Tová, a versão judaica de Feliz Ano Novo. Recebi inúmeras mensagens gostosas, mas também uma que partiu meu coração. Por mais que não seja novidade, ainda não estou acostumada a receber ataques antissemitas e digo a mim mesma que eu não deveria mais me surpreender tanto. Mas me senti novamente como uma criança no parque que levou uma bolada surpresa na cabeça.
Comecei a me questionar e a ler e reler o meu texto. Será que eu havia errado? Não, para. Eu não estava comemorando as mortes dos libaneses e palestinos inocentes durante a guerra. Eu apenas parei para relembrar os mortos do meu povo, lamentei todas as mortes dos dois lados, desejei o fim da guerra e falei sobre o Rosh Hashaná, o nosso ano novo.
Eu consigo entender que para quem não é judeu, é difícil compreender completamente a profundidade deste sofrimento. No entanto, sei que a minha reação frente a uma mensagem antissemita é legítima: é muito difícil sofrer um ataque por conta da sua identidade. E o pior, pois o ataque vem na esteira de um trauma coletivo gigantesco. Não custa lembrar que o Holocausto aconteceu há apenas 80 anos. Meus avós não tiveram primos, tios ou avós, pois foram todos massacrados na guerra. Este é um tipo de dor que atravessa gerações.
O sangue subiu, custei a me acalmar. Fiquei com raiva até de mim mesma: me perguntei por que havia publicado a tal edição e senti vontade de fechar a newsletter. Conversei depois com uma amiga que me disse que não posso voltar para dentro da caixa - a caixa onde moravam nossos antepassados, aqueles que nunca tiveram condições de falar em público sobre sua religião, sua identidade e seu povo. Mas estamos em 2024 e eu posso relembrar: eu sou judia, gente.
Isso não quer dizer que sou responsável pela guerra em Gaza e no Líbano. Tampouco que eu deveria me flagelar em público ou sentir vergonha por ser quem sou e por fazer parte deste povo. Tenho direito de falar sobre como tudo isto que está acontecendo doi - explicar como se os reféns e vítimas israelenses fossem parte da minha família. Acima de tudo, me recuso a sentir vergonha pela minha religião e origem.
No meio dessa onda de luto, um livro não me saiu da cabeça: Uncomfortable Conversations With a Jew, de Emmanuel Acho e Noa Tishby. Acho é filho de pais nigerianos, ex-jogador de futebol americano e apresentador do canal de YouTube Uncomfortable Conversations with a Black Man, e Tishby é uma ativista israelense. Ele não é judeu, ela é. Após o ataque do 7 de outubro, eles se juntaram para escrever um livro que traz todas as perguntas desconfortáveis sobre o judaísmo, antissemitismo e a guerra atual.
O livro é uma celebração do que significa ser um aliado. No 7 de outubro do ano passado, Acho notou como Tishby passou a noite em claro em uma live no Instagram, explicando ao mundo o que estava acontecendo e recebendo mensagens de israelenses que estavam escondidos nos kibutzim, com pedidos de socorro. No dia seguinte, ele procurou a amiga para saber como ela estava e o que podia fazer por ela.
A resposta de Tishby?
"Stop what you're doing and check on your Jewish friends."
Os dois autores discutem como não-judeus podem ser aliados dos judeus neste momento. Em um primeiro lugar, isto acontece através da educação e do conhecimento: se você é crítico de Israel ou contra o país, é fundamental aprender um pouco a história de Israel e do povo judeu. Os autores do livro desmistificam o antissemitismo e mostram como ele mora até em frases que parecem inocentes (como a autora do tal comentário aqui na news, que ficou enfatizando na mensagem dela que ela não queria mais dar o dinheiro dela a mim - uma fala que remonta imediatamente à imagem do judeu avarento e ganancioso, um tropo antissemita que existe há mil anos).
A educação é sim uma ferramenta poderosa contra preconceitos. Quando uma pessoa começa a estudar a cultura e história de um povo, ela começa a desconstruir estereótipos e julgamentos. O mito do judeu avarento, por exemplo, surgiu na Idade Média, quando os judeus foram forçados a trabalhar com empréstimos com juros pela nobreza. Como os católicos eram proibidos de praticar a usura e os judeus não podiam possuir terras, esta virou a resposta perfeita para o problema de o que fazer com os judeus. Os nobres emprestavam dinheiro a eles (pois não era proibido emprestar dinheiro a não-católicos), forçavam os judeus a praticar juros exorbitantes e a ainda a cobrar os empréstimos. Dá pra entender que as populações locais não gostassem muito deles. Para completar, os nobres ainda cobravam impostos altíssimos dos judeus. Este combo se traduziu nos mitos "os judeus são todos ricos", "os judeus só gostam de dinheiro" e "os judeus são avarentos".
Acho conta que a motivação dele para escrever um livro é justamente enxergar a situação toda no Oriente Médio de outra forma e se abrir para uma nova perspectiva. Este é um ato de imensa coragem, como ele conta:
"Did the post-October 7th world made me feel like I, a Black man, could be on the wrong side of history by helping a Jewish woman tell her story? No doubt about it".
Mas é aí que entra a questão: como foi que uma minoria deixou de ter direito de se defender e de assumir sua identidade em público? Existem apenas 15 milhões de judeus no mundo. Eu me pergunto se qualquer outra minoria sofreria um ataque deste que os judeus do mundo todo estão sofrendo.
Para ser um aliado, os dois autores discutem, você não precisa largar o trabalho e começar a frequentar todos os protestos pró-Israel - a ideia não é essa.
"Allyship means doing what's in your power, at that moment, to do".
Isto pode significar procurar seus amigos judeus e ver como eles estão. Aprender mais sobre a nossa história e esclarecer falas antissemitas quando der de cara com elas. Procurar participar de cerimônias judaicas para conhecer nossa cultura. Ler um livro, escutar um podcast, assistir a um filme. Defender ou chamar a atenção para uma fala antissemita.
Quando parei para pensar desta forma, percebi quantos aliados tenho ao meu redor. Quanta gente - amigos e desconhecidos - me procurou para saber como eu estava desde o 7 de outubro. Para ver como eu estava lidando com a guerra. Para dar um abraço - ainda que virtual - no aniversário da data.
Foi então que caiu a ficha: o número de aliados ao meu redor é muito maior do que o de autores das mensagens antissemitas que recebi ao longo deste ano. Foi neste momento que me permiti sentir uma esperança - uma novidade para a fatalista que me tornei depois do ataque do Hamas. Uma espécie de lembrete: existe mais gente boa do que pensamos.
Para você que está lendo, saiba que só de chegar até o fim deste texto é significativo. Mostra que você está aberto. Então te faço um convite: venha ser um aliado também. Pode ser até lendo um livro como Uncomfortable Conversations With a Jew.
Não é à toa que o livro começa com a noção de desconforto - é difícil mesmo questionar as próximas crenças e se abrir com empatia para ouvir a perspectiva do outro. Mas é só desta forma que conseguimos construir uma jornada conjunta de aprendizado e ação coletivos.
Gosto de lhe acompanhar para conhecer um pouco mais do seu lado, da sua cultura… bem valioso para tantos de nós! Siga em frente de cabeça erguida e esperança acesa! Bjs
Ca, a informação nos liberta. Você tem um trabalho belíssimo de nos esclarecer coisas (mesmo as duras), com seu jeito único de contar tudo com embasamento e leveza na mesma medida. Eu jamais conseguiria saber como é encarar o antissemitismo, mas me dói imaginar. To aqui! Siga em frente e pode ter certeza de que você está sendo muito importante, mesmo nos momentos em que a pessoa teve/tem outra perspectiva - não há chances de alguém não ouvir suas falas inteligentes, respeitosas e embasadas. ❤️ Tome seu tempo quando precisar, mas não pare, muitos de nós estaremos sempre aqui te esperando.