Existem alguns lugares da minha mente que funcionam como templos para a leitura. Não posso ver uma foto de uma espreguiçadeira confortável debaixo da sombra que já me vejo lendo lá. De preferência, à beira d'água e com uma água de coco ao lado. Uma alternativa deliciosa é num sofá de frente para a lareira com uma manta nos pés e uma taça de vinho nas mãos - mas também serve uma caneca de chá. Sempre com uma bebida para acompanhar porque, convenhamos, a vida fica mais gostosa assim.
Mas a verdade é que adoro ler em qualquer canto: num restaurante ou café, no cabeleireiro, no carro enquanto aguardo a saída da escola… Eu diria que só não em veículos motorizados, mas não é bem verdade. Existe uma alegria particular de ler um bom livro em um avião ou trem (que saudades dos meus 20 anos).
Por isso, fiquei mexida quando li uma frase de Richard Powers na semana passada na conta de Instagram da Paris Review:
"Reading is the last act of secular prayer. Even if you're reading in an airport, you're making a womb unto yourself... you are also outside the realm of time."
(Em uma tradução livre: "A leitura é o último ato de oração secular. Mesmo que esteja lendo em um aeroporto, você está criando um útero para si mesmo... você também está fora do domínio do tempo.")
Achei perfeito. A leitura nos ajuda a transcender do momento e nos convida a acessar um outro lugar, num outro tempo. De repente, você está na Mongólia ou então em uma ilha remota no Canadá. Num outro planeta, num futuro que parece impossível ou num passado que nunca existiu de verdade, não daquela forma. Um livro é um bilhete de embarque.
Mas o que me tocou mesmo foi a noção da leitura como oração. Me lembrou da definição de humanismo de Mark Edmundson:
"To me, humanism is the belief that it is possible for some of us, and maybe more than some, to use secular writing as the preeminent means for shaping our lives. That means that we might construct ourselves from novels, poems, and plays, as well as from works of history and philosophy, in the way that our ancestors constructed themselves (and were constructed) by the Bible and other sacred texts."
(Mais uma tradução livre: "Para mim, o humanismo é a crença de que é possível para alguns de nós, e talvez mais do que alguns, usar a escrita secular como o meio preeminente para moldar nossas vidas. Isso significa que podemos nos construir a partir de romances, poemas e peças de teatro, bem como de obras de história e filosofia, da mesma forma que nossos ancestrais se construíram (e foram construídos) pela Bíblia e outros textos sagrados.")
Demorei para entender que os livros são a base da minha religião. Os judeus são conhecidos como o povo do livro - aqueles que amam dedicar sua vida para estudar e entender o livro sagrado. A minha paixão, no entanto, não é a Bíblia (apesar de amar as leituras que o
e a fazem), mas sim qualquer obra que sirva de passagem para outro lugar, outra vida, outros lugares dentro de mim mesma.Me construo diariamente com base nos livros que leio e que amo. Sou transformada por eles: aprendo mais sobre mim e sobre o mundo em que vivo, vivo novas experiências e alcanço uma compreensão fugidia sobre os limites que colocaria nas situações mais impensáveis. Afinal, não há nada como a leitura que nos convida a nos colocar no lugar daqueles personagens e então pergunta: se fosse com você, o que você faria?
É neste sentido que os livros são a minha religião: eles moldam a minha vida e atitudes, formam a minha empatia e visão de mundo, ampliam as fronteiras do meu conhecimento e escancaram tudo que ainda há por aprender. Quanto mais leio, mais ignorante me sinto. Tenho tanto ainda para ler, e tão pouco tempo de vida. Amar os livros é entender que a duração de uma vida é uma poeira cósmica perto do tempo que levaria para ler tudo que eu gostaria, uma galáxia que não para de se expandir a cada nova leitura que faço. É como a biblioteca infinita de Babel, escrita (ou descrita?) por Jorge Luis Borges, que começa da seguinte forma:
"O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente." (Se você nunca leu, fica aqui o link de presente).
Quando Nietzsche disse que Deus estava morto, ele se referia à impossibilidade de a crença nele continuar da mesma forma depois que a ciência e o Iluminismo começaram a revelar o que havia por trás do funcionamento do mundo e do universo. A secularização crescente das instituições mostrava que a força da fé iria diminuir cada vez mais. Para o filósofo, a esperança era no mesmo humanismo de Edmundson: com a notícia da morte de Deus, ele disse, espíritos livres se sentiam como que "iluminados pelos raios de uma nova aurora". Artistas, músicos e filósofos nos dariam uma nova religião, uma nova forma de apreciar o nosso assombro perante o mundo.
É este assombro que sinto quando leio Joan Didion ou Tolstói, Rosa Montero ou Emmanuel Carrère, Jane Austen ou Camila Sossa Villada: a sensação indescritível que suas obras conseguem captar, que seja por um instante, a maravilha do que é ser humano. Só para citar os exemplos que pularam na minha frente.
Da próxima vez que estiver lendo e alguém vier me chamar, dará vontade de pedir: não me interrompa, por favor. Estou rezando.
A leitura tanto é uma oração que é o que me acalma quando o mundo fica barulhento demais ou veloz demais. Me traz de volta para mim.
Adorei, Carol. Como sempre.
Cadê meu marca texto pra essa edição?