Ler "A odisseia" não é uma tarefa homérica
Edição #284: Uma nova tradução mostra como "A odisseia" é uma leitura deliciosa
Não tinha nada mais legal do que o dia de comprar material escolar. Todo ano, a escola organizava dois dias de uma feira: livros, cadernos, canetas, tudo de papelaria. Era sempre no fim das férias, para dar tempo para as longas sessões de encadernação com minha mãe. Ela comprava papel contact, aquele com o fundo quadriculado, e encapava livro por livro. Escrevia meu nome com uma letra bonita: Carolina Ruhman, 4ª série B.
Eu amava aqueles momentos. A papelaria da escola não tinha nem de perto a quantidade dos itens que você encontra hoje em qualquer lojinha, aqueles volumes de canetas de mil tipos, mas não importava. Eu ficava feliz só de ver as pilhas de cadernos Tilibra, as mil caixinhas de lápis de colorir vermelhas.
Mas o mais especial era ficar fuçando os livros didáticos enquanto minha mãe se empenhava naquela sessão infindável de encadernação. Nunca vou me escrever o dia em que abri o livro de História da quinta série e vi os desenhos incríveis dos deuses gregos. Foi paixão à primeira vista. Fiquei ansiosa para a volta às aulas, para o início do Ginásio, o prédio novo da escola, e, principalmente, para aprender sobre todos aqueles deuses.
Para quem cresceu rodeada da fé de que D's é um, D's é eterno, o choque de encontrar todos aqueles deuses foi enorme. O deus do vinho, a do amor, o do trovão, o do tempo. A ideia de que cada força da natureza podia ser personificada em uma figura mítica que se envolvia com os seres humanos, sentia ciúmes, realizava grandes obras e morava num Olimpo perfeito era tentadora demais.
Foi o início de uma grande paixão. Amei ler Circe, li Mitos Gregos com a Bia, estudei o guia do Philip Matyszak, me apaixonei como tantos outros pelo podcast Noites Gregas. No ano passado, caí de amores pelo livro An Odyssey, de Daniel Mendelsohn (falei dele aqui). Mas de alguma forma, nunca havia encarado o original - parecia difícil demais, monumental demais.
A menina que vibrava com a compra de material escolar ainda está viva por aqui, debaixo desta casca de quarenta anos. A cada disciplina do mestrado, vem a mesma alegria de encher o carrinho da Amazon gringa (mas agora sem o benefício do talão de cheques da minha mãe). Quando vi que iríamos ler agora A odisseia, de Homero, bateu aquele frio na barriga: empolgação, medo, delícia. Este sempre foi um daqueles livros que achava que seriam difíceis demais (Grande sertão, A divina comédia, A paixão segundo G.H.).
Mas minha professora foi enfática: nós precisávamos comprar a tradução de Emily Wilson. Foi assim que descobri este fenômeno literário de língua inglesa, o furacão que trouxe Homero para o centro da maior polêmica recente do universo da tradução. O motivo: Wilson decidiu abandonar todos os arcaísmos para focar na narrativa da Odisseia.
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