O que as mulheres querem
Edição #258: Isabel Allende, misoginia e as comédias dos anos 1990
Minha geração não foi a única que cresceu com uma trilha sonora misógina como música ambiente - mas talvez tenha sido a última. As letras eram sempre as mesmas: Ninguém sabe o que as mulheres querem. Diamonds are a girl's best friend. São fúteis, volúveis, manipuladoras. Não existe mulher feia, apenas mal-cuidada. O sexo frágil. Bruxas e interesseiras, fofoqueiras e maldosas. Não existe amizade verdadeira entre mulheres. É santinha ou cachorra. Por que você não dá um sorriso para mim?
Na semana passada, entreguei no mestrado um trabalho em que comparei dois episódios de sitcoms americanas de duas décadas diferentes: as estreias das séries 3rd Rock From The Sun, dos anos 1990, e Young Sheldon, que estreou em 2017. A primeira era a minha companheira das tardes sem lição de casa; a segunda, a série atual favorita da Bia. O objetivo era ver como a representação da família mudou ao longo do tempo - e eu queria ver as formas com que as mulheres e as relações de gênero foram transformadas no período. Será que o que eu cresci assistindo era tão diferente assim do que o que a Bia gosta hoje?
Se fosse para resumir a experiência em uma palavra, seria socorro. Eu não tinha ideia de quão normalizada era a misoginia nos anos 1990. Se você não assistiu a 3rd Rock From The Sun, eu explico aqui rapidamente: a série acompanha uma família de aliens que chegam à Terra e se disfarçam de uma família americana "normal" (o que quer que isso seja) para estudar e tentar entender os humanos. Era considerada uma comédia na época, mas hoje só recomendo assistir se você estiver com vontade de passar raiva.
O patriarca da família é um homem branco de meia idade, Dick, o chefe do grupo alienígena. Em uma determinada cena, ele discute com Sally, a única mulher da turma - mas que é, na realidade, um ET do sexo masculino. Ele dá a ela a missão de observar o gênero feminino e entender como elas devem se comportar. Ela fica frustrada e quer saber por que deve fazer essa tarefa. A resposta de Dick é simples: "Porque você é a mulher!". Sally, enfurecida, reclama: "Por que eu sou a mulher?". Dick responde: "porque você perdeu". O público ri da piada: a ideia de que as mulheres são seres inferiores é natural tanto para os alienígenas quanto para os humanos.
Quer outro exemplo? O "filho" adolescente de Dick, Tommy está na escola conversando com uma atleta - ela veste aqueles shorts minúsculos do uniforme do time de vôlei. Ele está dando em cima dela de forma meio agressiva e Dick o interrompe. Tommy responde: "Bem, algumas delas estão pedindo!". A insinuação é dirigida diretamente ao short da garota. O público ri de uma piada que passou a simbolizar o argumento de autodefesa de tantos estupradores. Não preciso dizer que o programa não envelheceu bem e revela como o conceito de engraçado e o que é considerado socialmente aceitável podem mudar em poucas décadas.
Se a Bia assistisse a isso, ficaria horrorizada. Ela é de uma nova geração Barbie, a versão de Greta Gerwig. Aos dez anos, ela já tem clara para si as noções de patriarcado e machismo. Ela já entendeu como o jogo funciona - e não está mais disposta a ouvir baboseiras sobre a inferioridade da mulher. Mas eu, com a idade dela, não perdia um único episódio de 3rd Rock. Achava aquilo tudo hilário - e depois esqueci do assunto. Só percebi o tamanho do problema ao assistir a série de novo agora, perto dos quarenta.
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Vou te falar para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.