Quando a escrita salva uma vida
Edição #274: Uma resenha de In Other People's Houses, de Lore Segal
De tempos em tempos, tenho a sorte de começar a ler um livro que me lembra da importância da escrita e mostra o poder dela de transformar tantas vidas. Pode parecer meio besta ou prepotente, uma tentativa de auto-engrandecimento, mas você precisa parar e lembrar o impacto que alguns livros tiveram na humanidade.
Vou começar com os óbvios: a Bíblia, o Corão, o Manifesto Comunista (sem querer colocar todos em uma mesma categoria). Quando Salman Rushdie publicou Os versos satânicos, não podia imaginar o tamanho do quiprocó que aquilo podia dar. O livro causou uma onda de protestos e levou o Aiatolá Khomeini a proclamar uma fatwa ordenando a execução de Rushdie em 1989. Em 2022, mais de trinta anos depois, o autor foi alvo de um ataque que o levou a perder a visão de um dos olhos. (Ele conta a perspectiva dele sobre o ataque no recém-lançado Faca).
Não dá para dizer que os livros são apenas histórias, como se elas fossem desimportantes. Histórias e narrativas moldam a nossa forma de pensar. Elas criam e recriam o mundo. Se fossem apenas histórias, não veríamos tantas discussões hoje em dia sobre proibir certos livros nas escolas. Como se a obra de Jeferson Tenório fosse tão perigosa quanto a maconha (que acaba de ser descriminalizada, veja só). Quando um livro como O avesso da pele é censurado, conseguimos vislumbrar o medo que certas pessoas sentem da discussão sobre temas como violência policial e racismo. É revelador.
Estes são os casos famosos. Mas existem tantos outros, milhares, que não são menos importantes.
Em 1938, uma carta escrita por uma menina de dez anos teve o poder de salvar a vida dos pais. O Talmud, um dos livros mais importantes para o Judaísmo, fala que “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro". Quem poderia então dizer que a escrita não é importante?
Essa história acima é real, e a autora da carta, Lore Segal, conta os detalhes logo no prefácio de Other People's Houses (infelizmente sem tradução para o português). Lore tinha dez anos quando seus pais a colocaram sozinha em um trem que a tirou da Áustria no que ficou conhecido como Kindertransport: um resgate organizado para crianças judias de territórios controlados pela Alemanha nazista. No total, cerca de 10 mil crianças judias foram salvas da perseguição dos nazistas no Kindertransport.
Lore foi a criança número 152 a escapar de Viena. Ao chegar na Inglaterra, ainda em um campo de refugiados, antes de ser adotada por uma família judia, ela escreveu uma carta aos pais com um objetivo claro: conseguir um visto inglês para eles.
"That winter of 1938 was one of the coldest in English memory. I sat in my coat and gloves and wrote a letter. It was a tearjerker full of symbolisms - sunsets, dawns, and the rose in the snow outside the window, 'a survivor,' I wrote, 'wearing a cap of snow askew on its bowed head'. The letter made its way to the Refugee Committee, which found my parents a job and got them the sponsors and visas to emigrate to England, proving that bad literature makes things happen. On my eleventh birthday, in March 1939, my parents visited me in Liverpool, where I was living with my first foster parents. They went on to the south of England, and their job as 'a married couple', that is, a cook and a butler.
"My letter had another effect: I had become, without knowing it, a writer. I remember walking around that cold camp, in love with my own words, rehearsing over and over my purple sunsets, thrilling to that clever frozen rose."
Imagina o esforço, o peso, a consciência de saber o tamanho da missão? A única arma que ela teve, aos dez anos de idade, foi o papel e a caneta. Foi suficiente. Ainda no prefácio, Lore fala que o impulso dela não era explicar ou convencer, mas sim "forçar a visão do leitor: ver o que eu vi, sentir como eu me senti."
Não consigo largar a leitura de Other People's Houses. Nele, Lore conta como foi viver a anexação da Áustria pela Alemanha e perder a casa da sua família. A partir daí, o livro é uma coleção de outras casas onde ela e a sua família viveram: a casa dos avós no interior, que logo foi tomada pelos nazistas. O apartamento do primo em Viena, que eles tiveram de dividir com tantas outras famílias. O campo de refugiados na Inglaterra. As várias casas de famílias inglesas que se dispuseram a abrigar uma pequena refugiada sozinha - e que não tiveram a real empatia de se colocar na posição dela e começar a entender o tamanho da dor e angústia que ela sentiu.
Tudo isso é narrado da perspectiva de uma menina de dez anos. No entanto, a compreensão do narrador é maior do que a experiência dela de então: é a voz de uma mulher que amadureceu ao longo dos anos e levou um tempo a entender toda a dureza de sua própria experiência.
No prefácio, ela conta como queria ser escritora, mas achava que não tinha sobre o que escrever - até o dia de uma festa em Nova York, onde começou a narrar a infância e o Kindertransport. Naquele momento, um silêncio caiu na sala e todos pararam para escutá-la. "Eu ouvi o silêncio. Entendi que tinha uma história para contar".
Cada parágrafo do livro parece ter o poder de partir meu coração. É um livro difícil, impossível. E ainda assim, lindíssimo. Lore Segal sobreviveu ao Holocausto e seus pais também - graças à carta dela. Um livro que merece ser tão lido e celebrado quanto o Diário de Anne Frank.
Que coisa linda, Carol: “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”! Que texto maravilhoso!
Não sei se consigo encarar uma leitura assim neste momento, mas eu fiquei com vontade de ler este livro que você indicou. O título já me chama atenção, afinal a casa dos outros nunca será a nossa, né!
Muito, muito obrigada por apresentar esse livro 🩷 Vou criar coragem, pois me parece necessária, e comprar meu exemplar