Quando encontro partes de mim em um livro
#89 Com a ajuda de Jazmina Barrera, Octavia E. Butler, Joan Didion e Italo Calvino (que turma inesperada)
Durante a gravidez da minha segunda filha, a minha vida mudou. Estávamos na pandemia, tive um burnout, fechei meu negócio. Precisei me recolher naquele momento que era tão mágico e tão dolorido, tudo ao mesmo tempo. Eu sofria com as crises de ansiedade, com a insônia, com a angústia com relação à minha carreira. Ao mesmo tempo, estava vivendo uma gravidez sonhada durante tantos anos, estava gerando uma vida, estava feliz.
As mudanças começaram a acontecer em uma velocidade enorme. Encerrei o Finanças Femininas, criei esta newsletter, comecei a me preparar para o mestrado. Depois de quase dez anos na mesma trajetória, mudei o rumo de uma forma espetacular. Eu sentia e comentava com as pessoas mais próximas que era a Isadora estava me mostrando o que eu precisava fazer lá de dentro de mim.
Tudo isso aconteceu há dois anos. Nesta semana, lendo o lindíssimo Linea Nigra, um grande ensaio em fragmentos sobre a gravidez e a maternidade de Jazmina Barrera, uma frase colocou em palavras aquela percepção que eu tive:
"Pensei: tudo o que eu escrever durante esses meses, tudo o que fizer, mas sobretudo o que eu escrever, escreveremos os dois juntos. Tão juntos quanto se possa estar: um no centro da outra."
Foi então que entendi. As decisões foram tomadas em conjunto por nós duas. Ela me empurrou para uma mudança com a qual não havia me permitido nem sonhar antes de engravidar. O meu caminho, que parecia tão claro, de repente deixou de ser.
Eu brincava que ela já era minha professora desde a barriga. No meu rol inclusivo de crenças, enxergo as pessoas que surgem na minha vida como professores. Quando uma relação é especialmente difícil ou intensa, quando ela vem para me transformar, eu sempre me pergunto: o que essa ela veio me ensinar?
Passei alguns dias refletindo sobre isso para escrever esta edição da newsletter, quando dei de cara com esta frase de Octavia E. Butler nas minhas anotações do mestrado:
"Your teachers Are all around you. All that you perceive, All that you experience, All that is given to you or taken from you, All that you love or hate, need or fear Will teach you - If you will learn."
Em uma tradução livre:
"Seus professores estão ao seu redor. Tudo o que você percebe, tudo o que você experimenta, tudo o que é dado a você ou retirado de você, tudo o que você ama ou odeia, precisa ou teme, irá lhe ensinar - se você estiver disposto a aprender". (De A parábola do semeador)
Foi aquela sensação gostosa de encontrar uma parte da sua forma de enxergar o mundo dentro dos livros. Joan Didion conta como encontrou conforto na literatura médica após perder o marido em O ano do pensamento mágico:
“Foi a essa literatura que me vi recorrendo. Descobri nela muitas coisas que já sabia, o que, em determinado momento, pareceu me oferecer conforto, validação, uma opinião externa que me dizia que não estava imaginando o que parecia estar acontecendo.”
Italo Calvino também fala sobre isto no ensaio Por que ler os clássicos:
"O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência."
Eu gosto das palavras validação e pertinência: o que eu penso faz sentido. Outras pessoas já chegaram a esta mesma conclusão sozinhas. Outras pessoas já sentiram o mesmo que eu. É nessa hora que vejo como a literatura tem o poder de nos conectar. Não estou mais sozinha nos meus sentimentos e reflexões - outras pessoas já passaram por isto e deixaram tudo registrado para quem viesse depois.
Que citações maravilhosas! Especialmente a da Butler e do Calvino me tocaram muito. É a beleza das palavras, isso de se transformarem e nos transformarem a cada leitura. O livro é um dos objetos mais inesperadamente dinâmicos e acolhedores que conheço ♥️
o melhor amigo do homem não é o cachorro não, é o livro. s2
literatura é companhia.