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Sobre escrever sem filtro

Entrevista com Andrea del Fuego

A entrevistada desta semana é Andrea del Fuego. Nascida em São Paulo, em 1975, é escritora e mestre em Filosofia pela USP. É autora de diversos livros, como Os malaquias (Língua Geral), que ganhou o Prêmio Saramago de Literatura, e mais recentemente, A pediatra (Companhia das Letras) - falei dele nesta edição.

Você pode conferir uma parte do nosso papo em vídeo. Abaixo, uma versão editada e condensada da entrevista.


Como foi para você essa experiência de escrever na voz de uma personagem que é tão pouco empática?

Um desafio imenso. Tive uma aflição que eu não tive com os outros livros, pois Cecília (a protagonista de A pediatra) é uma personagem que não causa uma adesão imediata para muitos leitores e leitoras - embora eu receba hoje muitos feedbacks de leitores que têm um prazer imenso na leitura. É o prazer pela identificação, de se ver completamente, pois a narradora é uma primeira pessoa feminina que fala um pouco da sombras, daquilo que não é possível falar. Inclusive, a Cecília não fala - aquilo tudo é o pensamento dela, ela não chega a quebrar um pacto social, ela se contém, e a medicina é um biombo perfeito para isso, um biombo social. Uma vez que ela cumpre os protocolos da ciência, ela pode ser quem ela quiser, pensar o que quiser.

O prazer da escrita veio deste lugar, de escrever uma mulher com pensamento sem filtro. Foi bastante desafiador, mas muito prazeroso. É muito bom escrever essa louca, escrever esse fluxo, esse pavor da vida. Tem medo imenso das relações, da profundidade que as relações oferecem. A relação oferece uma possibilidade de densidade, profundidade, e a relação também é um cuidado - e ela tem muita preguiça do cuidado, uma exasperação. A Cecília foge disso, não só das crianças, mas quando o pai dela adoece, ela vai no hospital e toma remédio para dormir. Quem toma remédio para dormir cuidando do pai? É uma assepsia, sem os fluxos e refluxos que uma relação traz.

Como surgiu para você essa ideia de escrever sobre essa maternidade às avessas que você relata no livro?

A vontade era de falar sobre a maternidade. Pensei num outro jogo, que não fosse a voz da mãe, ou na voz, por exemplo da própria doula, que é essa figura muito próxima da maternidade, mas aquilo não me rendia frases. Consegui encontrar um tom saboroso de escrita, que pudesse ser um prazer em ler, independente da identificação com a protagonista. Esse caminho veio com essa acidez, com esse pensamento sem contorno, sem cerca nenhuma e indo de encontro ao que se imagina de uma médica pediatra. Se fosse um hematologista, um neurocirurgião, um cardíaco, talvez não causasse tanta exasperação quanto uma pediatra que não goste de criança, porque ela carrega muita coisa, é um símbolo da mãe. É um símbolo que é colocado à prova.

Você acredita no poder dessas personagens más para desconstruir essa visão cultural do papel da mulher?

As personagens más existem desde os contos de fadas - está lá madrasta, né? O olhar é que está encontrando agora um certo ineditismo, porque talvez a gente tenha tido um momento em que as personagens mulheres passaram pela literatura com um empoderamento a partir de uma vulnerabilidade. Já a Cecília não, ela não é uma mulher vulnerável. Ela tem mil problemas, mas ela não tem vulnerabilidades. Ela tem autonomia moral, no sentido de pensar o que ela quer, autonomia sexual, financeira, social. Agora, se fosse um pediatra homem, não haveria essa ideia de uma canalha.

Vi numa entrevista você falando que estava escrevendo outro livro quando surgiu a ideia de A pediatra. Você retomou o livro anterior?

Eu fazendo as anotações para ele, lendo muita coisa e principalmente andando um pouco na região, que seria no bairro do centro de São Paulo, Sé, perto da Liberdade. Estou fazendo também uma bela de uma revisão dos meus contos, retomando alguns que já foram publicados em antologias, relendo, mexendo em alguns deles. Fazia muito tempo que eu não sentia um prazer tão grande de escrever.

Eu sempre tive prazer em escrever, mas existem processos e processos. Este processo que eu estou já tem uns 6 anos tem uma busca pela expressão, pela personagem, havia uma narração ali um pouco comedida para respeitar alguns lugares ali narrados. A escrita da Cecília, com aquele pensamento sem filtro, me deu um pouco de coragem do ponto de vista da linguagem, deu uma soltada um pouco nas engrenagens.

Qual é o livro que mais te marcou e o livro que você acha que todo mundo deveria ler?

O livro que todo mundo devia ler é Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Para mim ele é uma composição, uma sinfonia latino-americana. É um livro que eu retomo, é um espetáculo, todos nós latino-americanos precisamos nos ouvir ali.

Um livro que me marcou muito foi o Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Acabei de escrever o prefácio da edição comemorativa da Companhia das Letras e fiz uma fala de uma jornada do José Saramago. Renovei meus votos com um dos livros principais da minha vida, pela discussão sobre a justiça, sobre a culpa humana e a audácia do escritor. É muito bom lembrar disso, da audácia.

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Autores
Carolina Ruhman Sandler