Testemunhar é preciso
Edição #283: Como foi ouvir as histórias de dois ex-reféns do Hamas
Achei que fosse chorar a noite inteira. Para falar a verdade, eu já estava chorando antes mesmo de sair de casa. Começou quando criei coragem para assistir ao vídeo da fala da mãe de Hersh Goldberg-Polin, um dos reféns do Hamas executados após onze meses de cativeiro em Gaza, durante o funeral dele, que havia acontecido no mesmo dia. "Finally, finally, finally, you're free". Impossível ouvir estas palavras e não ficar dilacerada. Então quando cheguei ao local onde seria o evento com dois ex-reféns e um soldado israelense, tinha certeza que a choradeira só iria crescer.
Mas na hora em que os vi tão perto que nossos olhos se cruzavam, não tive coragem de soltar as lágrimas. Se eles conseguiam contar aquela história sem chorar, senti que precisava me conter de alguma forma. Não tem jeito: ver a força do outro é algo que revela onde a nossa estava escondida. Como se fosse contagioso.
No momento em que recebi o convite para participar do evento, entendi que o papel de todos os ouvintes era o de prestar testemunho. De conhecer aquelas histórias e carregá-las adiante. Numa dolorosa tradição do povo judeu que transforma os momentos de dor profunda em marcas no calendário, para serem lembradas por gerações e gerações. Assim como temos o Pessach para contar sobre a escravidão no Egito e o aprendemos sobre o Holocausto para nunca esquecer que todo aquele horror de fato aconteceu, as dores do 7 de outubro são o fardo para nossa geração levar adiante.
Os memoriais do Holocausto e os campos de concentração remanescentes servem como uma lembrança. "Nunca mais", dizemos então. Gravamos os depoimentos dos sobreviventes dos campos, lemos o Diário de Anne Frank e nos preocupamos pois os últimos sobreviventes estão partindo e a responsabilidade de não deixar o mundo esquecer agora é nossa.
Depois do 7 de outubro, no entanto, a palavra sobrevivente ganhou um novo contexto. Agora ela também se refere aos que sobreviveram ao ataque ao Nova Festival, aos massacres nos kibbutzim perto da fronteira. Nosso papel é não deixar que o mundo esqueça o 7 de outubro - um risco tão real quando ainda há 101 reféns em Gaza, nas mãos do grupo terrorista, e poucos parecem se lembrar ou revoltar com o fato.
Sabia que precisava ir ao evento ouvir os ex-reféns, por mais que fosse chorar. Eu achava que estava preparada para as histórias duríssimas, mas não estava. Doi na alma ouvir como foram retirados de casa à força, como tiveram que caminhar por quilômetros no escuro, descalços, nos túneis de Gaza, como passaram fome e semanas sem tomar banho. Achava que seria impactante ouvir os atos de heroísmo do soldado que foi ferido em Gaza, mas nunca imaginei tudo que ele precisou fazer para salvar os companheiros da morte que parecia certa - e depois tocar lindamente no violino para a plateia do evento.
Contudo, o que eu eu realmente não estava preparada era para ouvir foi como as narrativas deles estavam recheadas de palavras como sorte ou milagre. "Foi um milagre que deixaram nossa família ficar junta num único lugar". "Foi uma sorte quando tiraram o guarda maldoso e ele não apareceu mais". Frases assim.
Eles falaram como não imaginamos que seríamos capazes de sobreviver a provações como estas, que não sabemos a força impossível do ser humano, o tamanho que tem o nosso desejo de sobreviver, de ser feliz. Mas a força real estava nas palavras deles: como alguém consegue passar por tudo aquilo e ainda contar dos pequenos momentos de sorte, em meio a um tsunami de azar? Os minúsculos milagres que povoam a tragédia? De onde sai tamanha vontade de viver?
E ainda assim, lá estava ela. Não eufórica, pelo contrário. Os olhares deles carregavam um peso que é impossível de imaginar. E ainda assim, eles sorriam.
Mesmo com o mundo declarando "All Eyes on Rafah" enquanto os reféns israelenses eram mantidos dentro dos túneis e apartamentos da cidade. Mesmo quando a guerra foi interrompida para Israel vacinar as crianças palestinas contra pólio enquanto Hersh e outros reféns eram assassinados.
Um dos ex-reféns falou que todos nós temos provações e dores em nossas vidas, mas que ela continua. We will dance again, como dizem os sobreviventes do Nova.
A mensagem ressoou forte aqui dentro e carrego ela comigo, como um lembrete ao meu coração dilacerado nestes tempos horríveis.
We will dance again.
É tanta dor e horror que não conseguimos sequer imaginar…. obrigada por escrever esse texto, desejando luz e força para você e todos os impactados por esse terrorismo.
Abraço com carinho, Carol!