Fui a primeira pessoa da minha família a visitar a Polônia desde que meus avôs emigraram para o Brasil ainda crianças. Era o mês de férias de verão na Europa, o fim da bolsa de estudos que me permitiu fazer um ano da faculdade em Paris - e o plano era conhecer sozinha a Europa do Leste de mochila. O roteiro foi desenhado com a ajuda da Mel, que tinha feita essa viagem no ano anterior e me deu todas as dicas: Berlim, Varsóvia, Cracóvia, Praga, Munique, Salzburgo, Viena e Budapeste em menos de 30 dias, munida de uma edição tijolo do Lonely Planet onde ia marcando todos os lugares que visitava.
Enquanto planejava a viagem, liguei para meu avô Jerá (nascido Jerachmiel) e pedi o nome da cidade onde ele havia nascido - queria incluí-la no meu roteiro. Ele tentou me dissuadir, explicou que Lutz não existia mais. “Era apenas um vilarejo, todo mundo que ficou foi assassinado”. Mas não dei muito crédito e resolvi que iria dar um jeito de encontrar. Não era possível que ninguém saberia da cidade nas estações de trem.
Era verdade: ninguém com quem conversei na semana que passei na Polônia havia ouvido falar de Lutz. Tentavam me convencer que era Lodz e cheguei a ligar para o vovô Jerá de novo, mas ele deu risada. “Lodz era cidade grande! Lutz era um buraco que não existe mais”. Ele, que adorava viajar, nunca teve a menor vontade de voltar ao lugar onde nasceu. Anos mais tarde, muitos depois da morte dele, encontramos um documento que provava que ele havia nascido na Polônia, mas que mostrava que a tal Lutz fazia parte do território ucrâniano. E não: ela não existia mais.
Meus dias na Polônia foram um procurar algo que não estava mais lá. Fui ao Gueto de Varsóvia, ao cemitério judaico, andei nas ruas de Cracóvia e procurei traços da minha família que talvez nunca tenham existido naqueles locais. Deixei a visita aos campos de Auschwitz e Birkenau para o último dia, talvez num ato de sabedoria que não soube apreciar no momento.
Auschwitz foi transformado em um museu. As barracas onde dormiam os judeus empilhados uns em cima dos outros foram reformadas por dentro e abrigam agora os itens que pertenciam aos judeus que foram levados até lá e achavam que era apenas mais uma mudança de endereço. Milhares de malas empilhadas. Milhares de sapatos. Milhares de óculos. Bilhões de fios de cabelos que foram raspados e guardados. Provas de que aquilo aconteceu de fato. Que os donos de todas aquelas malas e sapatos e cabelos foram assassinados no Holocausto.
Em uma sala de documentação, com milhares e milhares de sobrenomes, encontrei o meu: Ruhman. Perdi o fôlego e corri para o lado de fora. Eu tinha 21 anos e liguei para a minha mãe chorando do outro lado do mundo. Ela levou o maior susto, não eram nem seis horas da manhã. Como explicar o horror?
De Auschwitz para Birknenau era uma caminhada de três quilômetros que fiz naquele dia quente, céu azul, tênis nos pés. Birkenau era um campo de extermínio e quem fazia aquela mesma caminhada apenas 60 anos antes fez em outras condições, morrendo de frio e fome, ia a caminho da morte certa.

Birkenau não é um museu. Os barracões foram mantidos na forma que estavam no fim da guerra. Entrei ali, senti um cheiro de morte e consegui transpor as imagens dos judeus esfomeados para o local onde estava. O choque foi tão grande que perdi a reação. Um grupo de judeus israelenses estava conduzindo uma cerimônia em homenagem aos mortos lá no meio do campo, todos envoltos em bandeiras de Israel, e me juntei a eles. Abracei e fui abraçada e cantamos juntos o hino de Israel, que em português se chama A esperança - a mesma música que aqueles que iam para as câmaras de gás cantavam em seus últimos momentos de vida.
Enquanto dentro do coração
De cada alma judia palpitar
E na direção do oriente
Os olhos para Sião se dirigirem
Ainda não passou nossa Esperança
Esperança de dois mil anos
De ser um povo livre em nossa terra
A Terra de Sião e Jerusalém
(Caso queira se emocionar, ouça aqui a versão em Hebraico. Nunca consegui cantar sem chorar. Imagino os judeus cantando sobre a esperança a caminho da morte. Arrepia a minha alma)
Assim que entrei no ônibus que me levou de volta para Cracóvia, tomei a decisão de deixar a Polônia naquela mesma noite. Fui direto para a estação de trem, troquei a passagem que era apenas para a manhã seguinte para dali a duas horas, corri para meu albergue, peguei minhas coisas e voltei para pegar o trem que iria me tirar dali. (Inevitável pensar nos trens que levaram milhões de judeus para os campos de concentração).
Foi inevitável lembrar desta viagem assistindo ao filme A Real Pain, do escritor e diretor Jesse Eisenberg. No filme, dois primos decidem ir juntos para a Polônia para visitar os campos e ver o local onde a avó deles havia nascido. David (interpretado por Eisenberg) é ansioso, controlador e neurótico, uma mistura de TOC e depressão, parece um personagem de Woody Allen. Já Benji (interpretado por Kieran Culkin) é expansivo, irritadiço, impulsivo, sedutor, impossível.
Os dois carregam uma dor e um luto, mas é impossível ficar imune a Benji: em uma cena, diante de um monumento, inventa uma brincadeira boba para todos os participantes do tour deles para compor a cena da escultura. Todos riem da bobeira e, mesmo sem querer, se juntam à farra. Todos, menos David, que fica a cargo de tirar as fotos. Em outra, ele faz um escândalo completo, maltrata todo mundo em um surto de grosseria em um restaurante e foge, para depois aparecer e assumir o piano. David parece que está lá apenas para tentar controlar Benji, sem sucesso.
Benji e David estão sofrendo, cada um a seu modo. Eles tentam encontrar algo na Polônia e mesmo quando acham a casa onde a avó deles nasceu, a cena é anticlimática. É só aquilo mesmo? Tentam fazer uma homenagem, colocando duas pedras na porta de entrada da casa, seguindo o hábito judaico de deixar pedras nos túmulos daqueles que já se foram. Mas ali não é um túmulo, o vizinho protesta e manda retirar. Nada na Polônia é deles ou da família deles.
Na minha pesquisa para o mestrado, encontrei um conceito que me ajudou a entender melhor a minha experiência e, de quebra, o filme: imaginary homeland. A Polônia não foi a pátria da minha família, foi apenas o local de onde viemos e onde meus antepassados tentaram estabelecer uma vida e não conseguiram. Foram atacados sucessivamente, expulsos pelas condições ruins de vida, assassinados. A pátria com a qual me conecto não é a Polônia, a Romênia ou a Ucrânia dos meus antepassados, mas sim Israel: a pátria imaginária minha e dos meus antepassados, a terra cantada no hino, dois mil anos de esperança.
David e Kieran não têm uma catarse na frente da casa da avó pois nem ela nem eles pertencem àquele lugar. O anseio não pode ser saciado na Polônia. E, como diz o título do filme, a dor deles é real: é a dor do trauma intergeracional, a herança cultural do nosso povo. Para entender o que está acontecendo hoje com os judeus do mundo todo, você precisa levar em conta esta ideia. Há oitenta anos, 6 milhões de nós foram assassinados. Ainda há sobreviventes vivos, com números marcados no braço.
Escrevo este texto com o coração dilacerado. O Hamas acabou de anunciar que vai libertar os corpos de quatro reféns mortos em Gaza nesta quinta-feira. Israel é minha pátria imaginária e vou viver este luto daqui, do outro lado do Atlântico. Somos todos conectados por uma história, uma cultura, uma religião. Aquele é o meu povo. Somos todos a mesma família.
Bacana, Carolina!
Não sou judeu, mas minha mulher é. Fomos à Polônia em busca das raízes familiares dela.
Dois dos momentos emocionantes que experimentei por lá foram as visitas aos cemitérios bombardeados pelos alemães na Segunda Guerra. Vi túmulos, lápides etc. em pedaços ou destruídos e, em alguns, sobrenomes que de vez em quando ouço aqui no Brasil, como, apenas para citar poucos, Cohen, Katz, Rosenberg, por exemplo. Me veio um sentimento de solidariedade muito verdadeiro.
Um outro momento modificou meu comportamento de turista até hoje. Tirei 2 fotos em Auschwitz. Quando ia bater a terceira, senti um grande desrespeito de minha parte aos mortos. Dali em diante, quando faço viagens, são raras as fotos que trago de recordação. Seja em um local paradisíaco ou em um local marcado por tragédias, prefiro contemplar, refletir, imaginar. Isso basta, me preenche e me satisfaz.
Ca, que soco, que forte, que texto. Um beijo carinhoso! ❤️