Não lembro quantos anos tinha quando aprendi aquela reza. Uns três, talvez, pois precisava da ajuda da minha mãe para conseguir lembrar dela inteira toda noite. Era parte do nosso ritual.
Depois de escovar os dentes, fazer xixi e por pijama, chegava a melhor hora: eu me deitava na cama e ela se sentava na beirada. Rezava comigo com calma, dizendo as palavras para eu repetir:
- Meu D’s do céu... – ela começava.
- Meu D’s do céu... – eu repetia, com a mesma entonação.
- Proteger o meu papai...
- Proteger o meu papai...
E assim a gente ia. Levei algumas décadas para perceber os erros gramaticais, mas não importa. A reza vinha do coração e pedia proteção para meu pai, minha mãe, meu irmão e toda a minha família, todos os pobres, os doentes e eu, amém.
Não sei ao certo de onde ela veio – se foi da minha avó ou da Dita, a babá da minha mãe. Minha avó é filha de imigrantes da Bessarábia e ela nasceu pouco tempo depois de desembarcarem aqui. Acho improvável que ela tenha traduzido a reza do yiddish (o dialeto dos judeus da Europa Oriental). Me ocorre, enquanto escrevo, que o original deve ter sido “protegei” – o que faria mais sentido -, mas que a gramática teria se perdido neste telefone sem fio das últimas décadas.
Pouco importa. Depois do “amém”, eu sempre ganhava o número de beijos correspondente à minha idade mais um. Um beijo até eu completar um ano, dois até ter dois, e assim por diante. Era o nosso ritual. Todo aniversário, eu era promovida a mais um beijo noturno.
Demorou um tempo para que eu me desse conta que não havia nada de religioso naquela invocação. Quando comecei a ir dormir na casa das minhas amigas da escola judaica que frequentei, descobri que as que rezavam à noite, o faziam com alguma prece oficial, que fosse o Shemá, nossa reza mais sagrada. No entanto, nunca fomos religiosos e não conseguia imaginar minha família com uma reza saída dos livros de oração. A nossa é tradição familiar, não instituição.
O dia exato em que a minha mãe parou de me colocar para dormir ficou perdido. Não sei nem se ela percebeu que aquilo havia acabado até alguns dias depois, ou se ela se deu conta na hora em que eu teria dito que não precisava mais – e ficou torcendo para eu mudar de ideia. Ou será que foi ideia dela? Não, duvido – minha mãe não iria desperdiçar aquele momento tão precioso. Pode ser que isso seja uma romantização também: ela podia estar cansada, exausta depois de um dia particularmente difícil e agradeceu quando decidi ir para a cama sozinha – e só depois percebeu o luto de um ritual que se extingue.
Mas ele não acabou. Eu continuei a rezar todas as noites. A reza tornou-se viva. O “proteger o meu irmão” virou “os meus irmãos” quando a família cresceu. Rezei para os meus pais não se separarem e, quando não deu certo, parei de rezar por um tempo – mas só um pouco.
Comecei a incluir temporariamente namorados, amigas, pedidos para ir bem na prova, passar no intercâmbio, conseguir a vaga no estágio, depois aquele emprego... Rezei pelos meus avós, quando perdi um, e depois mais um, e depois mais um. Nas fases mais angustiadas, a reza se alongava até eu cansar. Em outras noites, quase esquecia do ritual e só lembrava que algo estava faltando quando chegava ao limiar do adormecer.
Saí de casa e ainda assim continuei com aquela reza de criança. Já senti certa vergonha – aquela reza de menina nas minhas noites de adulta soava algo meio absurdo. Mas fazer o que com aquele ritual com raízes tão grossas e profundas?
Então continuei. Quando estou num momento difícil, rezo com mais força, mais intensidade – quase acreditando mesmo que naquele D’s que ouve a minha prece e tem a capacidade e o desejo de interferir na minha vida de acordo com os meus pedidos.
Nas duas vezes que engravidei, a reza se tornou algo fervoroso, um momento sagrado. Pedidos noturnos por saúde, por bebê perfeitas, por uma gravidez tranquila, pelo conforto da ideia de que tudo tinha que dar certo. O medo é o companheiro noturno da grávida – quando tudo está quieto é que os monstros saem debaixo da cama. A reza era meu poder secreto.
Foi só então que me dei conta de que, na verdade, o medo é o lado B do amor. Quanto mais amor sinto, maior é o medo que o acompanha. É apego, eu sei – mas não sou monja para conseguir amar sem ele. Quero para mim, quero para sempre, com saúde, alegria e tudo de melhor que a vida puder dar aos meus amados. Não quero perder, nem faltar. Na hora que entendi isso, passei a encarar meus temores de outra forma. Quando ficam fortes (a cada decolagem de avião, exame de coronavírus, briga ou susto no pediatra), me lembro: esse medo é só o tanto que eu amo aquela pessoa. Nessas horas, eu rezo.
Não me lembro ao certo o dia em que ensinei a Bia a rezar, mas uma noite soube que estava na hora de (re)começar aquele ritual. Primeiro ditava frase a frase, como a minha mãe, mas depois a coisa foi ficando mais fluida. Hoje, é a melhor hora do dia. Entro na cama com ela e ela se deita no meu ombro. Fico sentindo o cheiro do cabelo, da testa, faço cafuné enquanto ela me olha no fundo dos olhos e reza. A vozinha é doce, sem um traço na personalidade forte e, por vezes combativa, que ela assume ao longo do dia. Naquela hora, ela é minha criança.
- Meu D’s do céu, proteger o meu papai, a minha mamãe, a minha irmã e toda a minha família. Proteger todos os pobres, os doentes e todo o universo que não seja mal. E eu, amém.
A parte do universo é criação dela – eu amo ver que aos sete anos ela já incorporou o próprio repertório à reza, tornou-a dela. Teve uma fase que ela começou a rezar pela cachorrinha, pelo namorado, pelos amigos. Avós, tios, prima. Tanta gente que aquilo começou a se prolongar mais e mais. Depois ela mesma cansou e condensou todo o amor naquelas três frases.
Afinal, a reza é viva, quase secular, mas cheia de intenção. É pura linguagem do coração.