Três bibliotecas marcaram minha juventude. A primeira foi a da escola: um dia feliz era um dia de trabalho na biblioteca. Chegava com uma lista de livros para a pesquisa, mas sempre eram menos do que eu gostaria. Meu sonho era ter de encarar uma pilha enorme de livros, desejo fantasiado de lição de casa. Lá eu tinha a sensação maravilhosa de que tudo o que eu precisava e gostaria de saber poderia ser encontrado naquelas estantes.
Depois, veio a biblioteca do clube. Ela era pequena e ficava escondida entre a sinagoga e a sala da diretoria – e estava longe de ser o lugar mais procurado do clube. Para mim, no entanto, era um porto seguro. Matava as aulas de vôlei e natação que meus pais insistiam em me matricular e fugia para lá.
Maratonava a coleção completa de Agatha Christie sentada num cantinho longe das vidraças, para não correr o risco de ser pega. Nunca me ocorreu que o professor de vôlei iria ligar para a minha mãe para perguntar por que eu nunca mais apareci nos treinos. O castigo foi enorme, mas valeu a pena: ali nasceu o vício da leitura.
Mas a mais importante para mim foi a biblioteca da minha avó. Só a descobri de verdade com uns 16 anos. Ela era professora de história judaica na escola onde estudei e tinha muitas obras sobre o tema. Quando eu era pequena, só conseguia enxergar o que me pareciam ser os infinitos volumes da Enciclopédia Judaica – e eles sombrearam outros tesouros por muito tempo.
No colegial, comecei a ir almoçar na casa dela de segundas e quartas-feiras, antes das aulas de inglês. Numa destas visitas, enquanto esperava ela terminar de pôr na mesa, fiquei olhando os livros com mais atenção e encontrei o preferido do meu namorado da época: Walden, de Henry David Thoreau, que fala de uma vida independente, simples, recheada de prazeres espirituais e artísticos. Foi uma revelação para aquela adolescente rebelde.
Levei-o para casa. No almoço seguinte, começamos a discutir Thoreau e ela me indicou outro. Assim, aos poucos, nasceu uma amizade que foi semeada pelo amor de nós duas pelos livros. Além das obras de história, descobri a paixão dela por filosofia, em especial pelos existencialistas. Na minha viagem de formatura do colegial, foi comigo a cópia dela de A Náusea, de Jean Paul Sartre. Não combinou muito com o clima, mas não importava. Foi com ela que aprendi a ler Gabriel García Márquez, Simone de Beauvoir, Herman Hesse, Philip Roth, Isaac Bashevis Singer, Primo Levi e tantos outros.
Ela me apresentou autores, ideias, movimentos, história. O escritor português Valter Hugo Mãe fala no livro As mais belas coisas do mundo sobre o que aprendeu com o seu avô:
De cada vez que a nossa cabeça resolve um problema aumentamos de tamanho. Podemos chegar a ser gigantes, cheios de lonjuras por dentro, dimensões distintas, países inteiros de ideias e coisas imaginárias.
As lonjuras que tenho dentro de mim foram pavimentadas por ela. Os livros emprestados nunca precisavam ser devolvidos e começaram a rechear a minha própria biblioteca. Nas visitas à casa dela, ficávamos olhando obra por obra nas estantes dela, discutindo os livros e tomando água com gás. Eu saía de lá sempre carregada de montanhas.
Morri de orgulho quando comecei a apresentar a ela novos autores, livros, ideias. Morri de orgulho de novo quando montei a minha biblioteca no meu apartamento, recheada de obras nossas, e a convidei para vir conhecer.
Ela morreu em 2019. Eu já conhecia a morte, mas não sabia o que era perder uma amiga e confidente. Desde então, não há um livro que leio que não tenho vontade de ligar para ela para contar. Como diz Valter Hugo Mãe, ela segue como um patrimônio dentro de mim:
Podemos falar com ela, ela vai responder de modo diferente. Sua resposta é a nossa própria ideia.
Este texto é um jeito de continuar a conversa.
(Saudades)
Ahhhh, Carol. Te leio hoje, por conta da carta para a Mari. Que vontade de te abraçar.
Tenho um carinho e umas saudades gigantes dos meus avós, tbm. E tbm com eles, desenvolvi o hábito e o prazer da leitura. Hoje, alguns muitos livros deles ocupam a minha biblioteca pessoal. E isso é motivo de orgulho e de saudade.
Teu texto me conectou tanto a esses sentimentos! Obrigada por dividir!
Que lindo amiga! Eu sinto o mesmo com relação ao meu padrasto, não tem um livro que eu não leia e pense em compartilhar com ele. Foi assim que surgiu meu insta. Um beijo