Encontrei duas amigas no meio de uma praia praticamente vazia neste fim de semana. Estávamos de férias na Bahia e aproveitamos para conversar um pouco – céu azul, temperatura amena, nenhuma barraca à vista. Uma delas veio me contar que estava lendo esta newsletter e que lembrava constantemente de uma antiga coluna de Contardo Calligaris sobre a escrita na Folha de S. Paulo.
Tentei e tentei, mas não encontrei a tal coluna. Mas a Rê me disse que falava sobre como o exercício semanal de escrever fez com que ele passasse a olhar a vida com outros olhos – com o olhar de quem está o tempo inteiro analisando tudo à sua volta para, quem sabe, virar texto.
É o mesmo que acontece aqui comigo. Passo os dias observando o que está ao meu redor. Descrevo cenas no bloco de notas do celular, pequenas joias do cotidiano. Como o jeito que a Isadora tem de fazer uma caretinha para nos provocar. Ela dá uma espécie de fungada com o narizinho e abre a boca de um jeito engraçado, mostrando os dois dentinhos debaixo e o restante da gengiva banguela e vermelha. Ela está nos chamando: vem brincar. Se eu a imito, lá vem a risadinha, o abraço ou uma pequena novidade que só quem a acompanha no dia a dia consegue perceber.
Tudo aquilo que chama meu olhar parece pedir uma narrativa. Começo a imaginar como descreveria aquele momento, aquela conversa, aquele olhar em um texto. Na minha cabeça, a vida ganha uma segunda camada. É a da explicação, da análise e da narração. Como com o ciúmes da Bia, que atravessa a nossa rotina como uma forma de chamar a atenção. Ao pensar sobre ele para um texto, entendo que não é tanto raiva da irmãzinha, mas sim uma necessidade de chamar nossa atenção.
Tento apaziguá-la de todos os jeitos. Deixo a Isadora com outra pessoa e vou brincar com a Bia, jogar um jogo, desenhar. Mas nem sempre dá certo, nem sempre tenho tempo ou disponibilidade. No último ataque de ciúmes, fiz um combinado com ela. Ao invés de gritar ou chorar, ela precisava vir avisar baixinho no meu ouvido: “ei, estou com ciúmes”. Ela pediu uma adaptação: “ei, eu existo”. Desde então, os pedidos de atenção são mais carinhosos e menos agressivos. Aproveito a proximidade física para abraçá-la. Nestes momentos, a minha prioridade muda: fazer com que ela perceba que a existência dela é o maior presente que o ganhei.
Ao refletir sobre a minha vida para poder escrever depois sobre ela, entendo melhor o que sinto e penso. Passo então uma boa parte da semana vivendo em dois andares na minha cabeça: o que observa e aquele que pensa sobre o que vê. Subo e desço as escadas para não deixar de prestar atenção em nada. Quando gosto de algo que pensei ou vi, vou correndo para o bloco de notas do celular. Queria ser a pessoa que escreve tudo isso num caderninho, mas simplesmente não é prático.
Aos poucos, uma daquelas anotações começa a ganhar vida própria. Eu penso e registro tudo para saber qual crônica vou escrever. Mas todo esse momento que antecede o sentar na frente da tela branca é só uma fração do processo. É só na hora que começo, de fato, a escrever que o texto surge. Lembro de fatos há muito tempo esquecidos, ideias e conexões novas me surgem conforme escrevo. Existe uma certa magia no processo: eu preciso começar e, aos poucos, o texto me diz qual caminho ele deve tomar. A estrada se constrói ao longo do andar.
Não sei se foi bem isso que o Contardo disse. Quanto mais eu vivo, mais percebo que a memória é, em parte, ficção. Nunca pareço me lembrar do que aconteceu da mesma forma do que os outros. Quando me sento com a minha mãe numa sessão de nostalgia, as lembranças são desencontradas – eu acho que todo mundo foi junto naquele passeio e eu fiquei sozinha esperando eles voltarem, ela tem certeza de ter ficado comigo. A resposta certa parece não existir – e talvez não haja mesmo. Mas enquanto registro minha vida e os meus pensamentos, enquanto transformo eles em texto, ganho não apenas o testemunho. Ganho também uma vida mais profunda, vivida e pensada com cuidado em suas miudezas.
Uau. Eu tava pensando sobre isso ontem justamente pq estava no piscinão de Ramos em Berlim e fiquei pensando em textos. Na real to sempre pensando e fazendo notas também. Como eu brinco: não importa o que aconteceu, mas como se conta.
"Existe uma certa magia no processo: eu preciso começar e, aos poucos, o texto me diz qual caminho ele deve tomar. A estrada se constrói ao longo do andar."
Que maravilhoso isso! Me sinto da mesma forma. Escrever me ajuda a criar uma percepção sobre coisas que às vezes nem percebi que estavam ali dentro de mim. É o melhor exercício de todos.