Eu amo que tudo na ficção tem um porquê. Cada palavra foi escolhida de forma intencional, cada cena tem um propósito. O autor tem espaço limitado e sabe que a síntese é a mãe do prazer da leitura. Ele ou ela não pode gastar tempo com bobeiras.
Não descreve cada peça de roupa ou a decoração completa do quarto a menos que aquilo tenha importância para a narrativa. Se diz que o protagonista tem mania de ficar brincando com o gelo no seu copo e o mostra repetindo a cena de tempos em tempos, é para mostrar algo: o gelo é metáfora da sua personalidade fria, é tentativa de se manter distante do calor dos acontecimentos, é sinal da ansiedade que não o deixa ficar quieto um instante.
Literatura é uma arte interativa: nós leitores temos o papel de ligar os pontos, de visualizar o todo. Se o autor dá detalhes demais, nossa imaginação perde seu papel – e somos capazes de perder o interesse no livro. Se o autor já avisa que o personagem tem um transtorno obsessivo-compulsivo, paramos de tentar entendê-lo melhor para julgá-lo imediatamente. Não é à toa que não gosto muito de ler sinopses: quero entrar de cabeça naquele universo sem nenhum tipo de aviso prévio.
Quando lemos, juntamos aos poucos as descrições, as cenas, os personagens, entendemos melhor suas motivações e torcemos para que eles possam crescer, mudar, realizar. Essa magia só acontece se aceitamos implicitamente que cada detalhe tem o seu propósito ali na obra.
Assim, cada cena nos convida para pensar: o que o autor quis aqui? O que ele queria que entendêssemos sobre o caráter do personagem? Qual foi a intenção?
Na vida, não parece que temos nada disso. Gastamos horas no trânsito sem que aquilo simbolize nada sobre nossa vida ou caráter. Vamos ao dentista, enfrentamos burocracia para renovar os documentos, engolimos sapos e fazemos tantas ações repetitivas que muitas vezes nos perguntamos: como foi que cheguei até aqui? Qual foi o caminho que tomei?
Eu sou daquelas que acreditam que não existem coincidências na vida. É um esoterismo de quem acha que se algo aconteceu, era porque precisava acontecer. Como se deus fosse o grande autor e cada um de nós, personagens de algo maior. Enquanto escrevo, sei o quanto isso parece absurdo. Por outro lado, quando algo de ruim se avizinha, sinto e confio: existe um porquê (como diria Rita Lee).
É um conforto acreditar que a vida segue as mesmas regras da ficção. Que o meu destino sou eu que faço, mas algo maior que me guia. Que os momentos de tédio constroem meu caráter, que os tombos me tornam mais resiliente, que crescer doi.
Ainda assim, tem horas que sinto falta de um bom editor na minha vida. Como seria bom encurtar viagens e passar por cima dos detalhes irrelevantes, dos sustos e chatices. Meu editor seria benevolente: deixaria só os tombos significativos no meu caminho e transformaria minha rotina em um eterno final feliz.
Como essa figura não existe, tento viver meus dias dando valor para as pedras preciosas que encontro espalhadas no dia a dia. No sorriso das minhas filhas, no copo de chá quente que esquenta as palmas das minhas mãos, nas meias quentinhas, no casaco que parece um abraço. No dormir de conchinha e acordar sem pressa. Nessas horas, agradeço: isso daria um péssimo livro, mas rende uma vida deliciosa.
uow! que lindo!
to contigo em 100% (especialmente desejando um editor benevolente)
Li em sequência o seu texto e este aqui:
https://wingcosta.substack.com/p/jacare-de-boia-ou-teorias-absurdas
Eles dialogam muito bem, não?