Olá, tudo bem?
A crônica de hoje tem um sabor especial: ela ficou em segundo lugar no concurso literário Ben Gurion. Espero que goste!
O tio da minha mãe morreu aos 100 anos. Ninguém sabia a data exata do aniversário dele – algo comum entre os emigrados do início do século passado – mas alguém ouvira falar que foi perto de Chanuká[1]. Como estávamos em março, dava para saber que ele partiu depois de se tornar um centenário.
Fui com a minha mãe à shiva, o encontro diário que acontece na primeira semana após uma morte para confortar os enlutados que é parte integral da religião judaica. O que não lembrava depois de dois anos de pandemia era como esses eventos de família podem rapidamente tomar contornos de realismo mágico. Passei uma hora ouvindo histórias de pais que não haviam nascido no País que constava na certidão – e os filhos só descobriram a verdade tempos depois da morte deles.
Histórias de documentos assinados pessoalmente por Getúlio Vargas. De uma sogra que não consegue explicar direito como, mas viu o parto da nora através da janela fechada da maternidade. De um caixão cuja tampa abriu no elevador e o braço do morto saiu, parecendo chamar o amigo que o acompanhava para estender a viagem para o além. Havia uma promessa de amizade eterna entre os dois. Quando chegaram ao térreo, ele gritava: Era brincadeira, Moishe!
Histórias de sobreviventes de Auschwitz que se encontravam semanalmente no Buraco da Sara, lá no Bom Retiro, para tomar vodca às 9h da manhã. Eles sabiam ser felizes, diz um tio, e o outro rebate, não, eles sabiam era viver.
Quem sempre aparecia era o vendedor de giletes do bairro com o seu sobretudo – era lá que ele carregava todos os seus produtos. Num desses encontros etílicos, ele abre o casaco e mostra o seu segredo: caviar contrabandeado. O pai de alguém resolve comprar uma caixa e guarda no porta-malas do carro. Mas ele esquece a latinha e só lembra depois de três dias. Quando abrem o porta-malas, descobrem que ela explodiu e o cheiro das ovas não vai abandoná-los tão cedo. Não conte pra mamãe, ele pede.
Saímos de lá às gargalhadas. No elevador, lembro de ouvir um psicanalista explicar que é o ritual coletivo que ajuda a dor a virar saudades. Esta é a sabedoria da shiva: os encontros viram consolo para quem fica. Um alento para todos que amaram e sentirão falta do tio Zsaja.
[1] Festa judaica conhecida como Festival das Luzes. Acontece tradicionalmente no mês de dezembro.
As despedidas são dos rituais mais importantes... Linda crônica.
Parabéns pelos louros do concurso!
Beijo grande.
Maravilhosa a crônica, Carol! Parabéns pela conquista no concurso ❤️