Pode ser que seja por causa da minha aversão às aulas de gramática. Eu leio com voracidade desde menina e quando comecei a aprender as conjugações gramaticais no ginásio, percebi que tudo aquilo fazia um sentido inato para mim. Na hora de escolher os tempos verbais, não errava uma. Mas quando a professora pedia numa prova o nome da classificação, já era. Pretérito imperfeito e mais que perfeito se embolavam num confusão só e os vários tipos de advérbios pareciam existir só para complicar a minha vida.
Essa minha dificuldade com a profusão de normas gramaticais pode ser a raiz do meu problema atual com a transição entre o passado e o gerúndio. Entre o “fiz uma aula de italiano” com o “estou estudando italiano”. Pensando bem, até o passado e presente do indicativo se confundem: “adorei aquele livro” e “adoro aquela autora”. Sou dona de uma velocidade inigualável de exagerar e transformar ocorrências separadas em tendências.
Pegue, por exemplo, o caso da corrida. Cresci vendo o meu pai sair para correr cedo no parque e passei a sonhar em ser como ele. Antes de me casar, corria com facilidade, e queria voltar depois de engravidar. Por uma série de motivos, não aconteceu. Outro dia, para a minha surpresa, fui para a academia e descobri que o meu treino de kickboxing me deu preparo físico para uma corrida de 3 quilômetros de primeira. Comecei aos poucos a treinar e, quando vi, já tinha uma crônica pronta sobre a corrida para esta newsletter.
Eu contava como estava voltando a correr e realizando um sonho meu. O problema, no entanto, é que eu não “estava voltando” a correr, mas sim, fiz alguns treinos de corrida e depois, parei. Não tinha tendência nem motivo algum para o gerúndio. O que havia era um exagero.
O Luiz diz que sou assim mesmo. Corro duas vezes e digo que estou treinando. Experimento um restaurante e resolvo que aquela será a minha nova tradição familiar. Saio um dia para comprar flores na feira e digo depois para a minha mãe que encho a casa de flores toda semana. O que eu gosto, eu amo – e quero todo dia. Confundo as minhas boas intenções com uma rotina que não existe e transformo o fato em hábito.
Ou então é culpa da minha formação jornalística. Tenho uma amiga jornalista que falava que se uma banda sueca vinha tocar em São Paulo, era tendência. Duas eram moda e três, febre. Eu morria de rir e concordava: o trabalho jornalístico é enxergar padrões e revelar tendências, encontrar pepitas de zeitgeist incrustadas na selva do dia a dia.
Trouxe essa mania para a minha vida. Outro dia, o Luiz estava em uma semana especialmente intensa de trabalho. Saía cedo, chegava tarde, e a Bia, acostumada com o pai que janta com ela todas as noites, não entendia nada. Expliquei para ela que aquela era uma semana especial: ele tinha um evento anual que sempre consumia a agenda dele. O tal evento havia sido cancelado durante a pandemia, mas agora estava de volta – e ela, que tinha acabado de fazer 6 anos quando tudo aquilo começou, não lembrava de nada.
Ela entendeu e foi logo se arrumar para a escola. O Luiz virou-se para mim e reclamou que aquilo não era mais verdade. A rotina dele (como de tantos outros) havia mudado muito de natureza nos últimos dois anos.
“Eu sei”, respondi. “Mas não importa muito. Você ainda tem o evento e ele ainda te consome, ainda que seja menos do que antes. Isso é suficiente para explicar para ela que aquela semana é especial”.
Ele não concordou e culpou de novo a minha mania de exagerar tudo.
Naquela hora, entendi que a culpa não era da gramática, nem do jornalismo, mas sim da literatura. O que gosto mesmo é de romancear, de achar beleza e explicações mais interessantes do que aquelas que a vida nos fornece. Um senso de ordem no caos, uma finalidade no que é, no fundo, pura aleatoriedade. Trago uma pitada de auto-ficção para a minha vida (e meus textos), mas não é para enganar. Se faz a história soar melhor, por que não?
Que bom fazer parte desse grupinho maravilhoso de pessoas que seguem insistindo em transformar o mundano em palavras (e que têm o privilégio de ler a sua newsletter) ❤
Gostei tanto que vim comentar, coisa que não costumo fazer. Comecei a ler despretensiosamente, mas fui imergindo de tal modo que acabei por compartilhar com meu marido dizendo “a minha cara, não é?”