Parece que algumas memórias habitam na mente dos outros. Algo que já foi tão corriqueiro e poderia se tornar precioso, caso o esquecimento não se abatesse, inevitável. O tempo é cruel; não dá para guardar tudo. A gente esquece. No entanto, a sorte pode nos fazer tropeçar naquela lembrança onde menos espera - mesmo quando ela é a recordação de outra pessoa.
Eu estava na fila da escola. Ouvia um podcast, deixava o tempo passar. Era a Aline Bei falando no Posfácio sobre a paixão pelos livros. Quando ela contou que a formação de leitora dela começou com as placas de rua, senti que ela narrava a minha história.
Voltei para o banco de trás do carro dos meus avós. Não me lembro do modelo, nem de onde íamos tanto com eles, muito menos de uma ocasião específica. Mas uma a cena da insistência do meu avô é vívida: “você precisa ler as tabuletas!”.
Para ele, era fundamental que eu soubesse sempre me localizar. O importante não era conseguir ler, mas sim saber a rua onde eu estava. Ele fazia chamada oral, queria que eu soubesse o nome de cada rua por onde passávamos.
Meu avô era assim. Depois dos 80 anos, ainda gostava de pegar um ônibus e ir até o ponto final, só para ver o que estava acontecendo daquele lado da cidade. Imigrante, chegou ainda criança ao Brasil, mas São Paulo era dele. Era destemido. Seu lema para os netos é que o vovô era “feio, forte, bravo e amigo”.
Quando ele começou a insistir nas tabuletas, eu ainda não sabia ler. Olhava para as placas azuis, letras pequenininhas e eu me sentia a menor criança do mundo. Esperava com ansiedade o dia em que aquele mistério se decifrasse.
Aconteceu num domingo à noite. Me lembro direitinho: estava folheando a revista Veja com minha mãe e, como num passe de mágica, as letras começaram a fazer sentido. Li uma palavra, e mais outra. Minha mãe gritou de alegria e eu gritei junto: consigo ler!
Minha memória não guardou o processo completo. Parece que foi magia pura. A partir dali, ler se tornou algo fácil. Quando alfabetizei a Bia (em plena pandemia), entendi que deve ter demorado muito mais do que me lembro. Mas na minha recordação, foi como apertar um botão. E fez-se a luz.
Sair com meu avô então deve ter sido o auge. Poder ler para ele todas as tabuletas e exibir a minha nova habilidade. Mas não consigo abrir esta cortina, recordar é impossível. Daria tudo para reviver um momento específico com ele, ouvir a voz que me mandava com tanto carinho ler as tabuletas.
Tanto tempo passou que não pensava mais nele ao olhar cada placa de rua. Aquilo teria ficado esquecido se não tivesse ouvido a Aline Bei compartilhar a lembrança dela no podcast. A minha formação de leitora também passou pelas tabuletas de rua, Aline. Tudo graças ao meu avô.
Na época, aquilo tudo era mais um detalhe. Estava mais preocupada com as amigas, o aniversário chegando, a viagem de férias, a lição de casa. Engraçado como o que parecia tão importante virou paisagem. A brincadeira da rotina, ah, essa sim. Isso é o que eu hoje vejo que não queria esquecer.
Amei, Carol! Que texto lindo e sensível! Ontem chegou um journal que comprei chamado “Minha História”. É inspirado no livro de Michelle Obama, e na introdução ela comenta sobre como a gente lembra de memórias e recordações. Ao longo do journal são apresentados vários exercícios para recuperarmos memórias e não esquecermos da nossa história. Eu acho que vc, de alguma forma, já pratica esse exercício. Acho tão lindo ver como sua escrita e como você apresenta suas memórias aqui! Elas vem carregadas de afeto. Boa semana para você!
Eu notei que conseguia juntar as letras e que elas faziam sentido lendo os outdoors da São Paulo dos anos 60, mais precisamente lá por 62 ou 63. Foi uma revelação súbita e maravilhosa e não esqueço o momento. Imediatamente passei a ler todos os dias para a minha mãe enquanto ela se maquiava no espelho em cima da pia; lia livrinhos infantis, e ela escutava pacientemente. Aprender a ler foi tão revolucionário que nunca esqueci a sensação. De lá pra cá, tirando um curto período adolescente em que a mente não dava conta por causa das distrações, leio diariamente por horas. Antes de dormir é ritual da vida toda, pelo menos uma hora, normalmente mais. Desde Monteiro Lobato, os poemas infantis de Cecília Meireles, As Mulherzinhas, e muitos mais, aos policiais escandinavos, aos escritores africanos maravilhosos, Ian McEwan, Elizabeth Strout e os brasileiros contemporâneos, etc etc etc. São muitos e o tempo é tão pouco.