Não dá para andar rápido no centro histórico de Paraty. As ruas de paralelepípedos antigas e tortas nos obrigam a desacelerar. As pedras desiguais e desniveladas pedem: olhe para o chão, vá devagar. São um convite para caminharmos com menos pressa e mais presença em meio à festa.
Não foi a minha primeira vez na Flip. Em 2009, fui a trabalho, mas não deu para aproveitar. Ficamos fora de Paraty, não tinha ingresso para as mesas, no fim do dia todos queriam voltar para o vilarejo onde estávamos para tomar cerveja no boteco. Eu queria ficar, passear, mas fui voto vencido. Eu era menina, o vilarejo ficava longe, não banquei a festa sozinha.
Desta vez, o plano era ir com uma amiga. Dois dias antes, no entanto, ela me avisou que estava com COVID e teria que ficar de molho em casa. Parecia destino, eu devia mesmo ir só. Todo mundo me disse: você vai encontrar e conhecer tanta gente… A introvertida em mim meio que duvidava. Cheguei desacompanhada, mas de fato encontrei, fiz e conheci tantos amigos que parecia carnaval.
Caminhei sem parar, entre o auditório principal e as dezenas de casas espalhadas ao redor que recebem a programação paralela. Visitei livrarias, tomei sorvete de erva cidreira e cerveja. Assisti a inúmeros escritores - tanto os que eram há tempos tão amados quanto aqueles que eram novidade para mim. A delícia era justamente essa: descobrir novas vozes, ouvir narrativas diferentes, deixar a surpresa assumir o volante.
No lançamento de um livro, ouvi a poeta portuguesa Patrícia Lino declamar:
Sem deslocamento, não há leitura
Sem empatia, não há deslocamento
Aquilo me pareceu tão verdadeiro. Estávamos todos ali um tanto deslocados geograficamente e, principalmente, dispostos a ouvir, a conhecer, a encontrar novas perspectivas que só a literatura nos oferece. "O exílio é a condição da poesia", disse.
Encontrei na Flip o lado humano de quem escreve, por trás das páginas, das críticas e resenhas. O palco da escrita descortinado. Não eram mais os narradores, e sim os autores e autoras, na maioria das vezes sem presunção ou arrogância, com o desejo profundo de serem ouvidos, e não apenas lidos.
Vi a cidade parar duas vezes. Uma para assistir ao jogo da Copa e outra para ouvir a Annie Ernaux. Não dá para saber quando todos nós vibramos mais, se foi com os gols do Richarlison ou quando a vencedora do Nobel declarou que queria "ter uma vida tão livre quanto a que os homens podem ter".
Na primeira mesa que assisti, a poeta Prisca Agustoni disse que "construímos e ocultamos nossas narrativas e memórias". Penso em tudo que não consegui guardar objetivamente, que ficou na névoa das taças de vinho, das conversas, das pessoas e dos tantos paineis daqueles três dias de festa. As fronteiras ficaram híbridas, como os gêneros literários - por onde ia, ouvia que a grande ficção era que ainda pensamos na distinção entre ficção e não-ficção, ensaio e memória. Quem dá a classificação quer reduzir o que não tem resposta.
Foi uma viagem com diversas narrativas que se cruzavam e entrelaçavam, mapeadas pelas minhas próprias paixões. "A literatura nos faz pensar que a vida não precisa ser assim como ela é", disse Luciany Aparecida em uma mesa, nos convidando a pensar em todas as outras formas possíveis de ser. O que vi na Flip foi isso: mais gentileza, simpatia, leveza do que encontro no meu dia-a-dia. Que vontade de encontrar mais daquele clima na minha volta para São Paulo.
A provocação ficou por conta de Benjamín Labatut, que fez uma declaração de amor para as sombras. "Se iluminássemos o mundo por completo, não conseguiríamos viver nele", disse. Para ele, a literatura "serve para dotar ao mundo um sentido que ele não tem". (Para ler mais sobre a fala dele - para mim, a mais fascinante da Flip, vale ler o texto da Bárbara Bom Angelo) Foi uma experiência maravilhosa viver aqueles dias ouvindo sobre a ambiguidade, a complexidade e o sentido que a literatura podem nos revelar. Ele contou de uma expressão chilena que adora e que resumiu os meus dias em Paraty: fui "curada pelo espanto", na melhor acepção da palavra.
Eu adorei te acompanhar... me senti um cadinho lá me equilibrando nas ruas de paralelepípedos. Fiquei aqui sonhando em ir na próxima! E eu adoro viajar sozinha para eventos como esses, pois é justamente sozinha que me sinto mais acompanhada e quando conheço mais pessoas interessantes.
Carol, obrigada por trazer um pouquinho deste evento que deve ser muito emocionante. Falas, olhares, sentidos. Quantas percepções você deve ter experienciado. Das coisas que quero viver 🌸