Comecei a escrever um conto. A personagem se parece comigo, mas não exatamente. Eu nunca faria o que eu digo para ela fazer, ela é mais desbocada, tem mais raiva. Escrevo para processar minhas histórias, mas ela quer ir muito além. Quando tento impor mais calma, ela se revolta. De repente, estou com um problema: a personagem não quer mais fazer o que eu mando.
"Está falso!", ela diz.
O pior é que concordo: nada daquilo faz muito sentido. As conclusões são precipitadas, as escolhas, superficiais.
"Parece que você está correndo para chegar no fim da página e tirar de si aquele conto mequetrefe".
Ela sabe o que fala: é a sensação que tenho quando começo a escrever ficção. Como se eu precisasse ir rápido, como se a coragem fosse faltar se eu parasse para ver o que estava fazendo.
"Até parece que você iria mostrar isso para alguém", ela provoca. A patife.
Ela viu que comecei a ficar brava e recuou:
"Você podia escrever de um jeito mais natural".
Ah, que sugestão brilhante! Pronto, a resposta é simples e a minha protagonista, uma gênia. Basta escrever com naturalidade! Confesso: agora quem tem raiva sou eu.
Ela tenta me guiar, mas sem sucesso. A minha naturalidade no reino da ficção inexiste. É como se eu estivesse usando um escafandro, pés de pato e roupa de neoprene para entrar na piscina das crianças. Todos os meus movimentos são exagerados.
Na verdade, é o oposto: como se eu caísse de biquini sozinha em pleno alto-mar. Não tenho nada para me proteger, para lidar com a enormidade das ondas que eu vejo lá no fundo e não sei nem como enfrentar. Ficção, para mim, é ficar à deriva no raso.
Com as crônicas, a minha escrita flui. Vou deixando as palavras surgirem para contar a história que escolhi. Elas são as minhas guias e me vejo tendo ideias e lembrando de passagens de livros como em um passe de mágica. Na não-ficção, é o ato de escrever que descortina o meu pensamento - que me faz pensar, na realidade.
Quando pego o meu caderno, sinto que vou para um lugar diferente encontrar uma versão de mim que sabe exatamente o que pensa, que reconhece as pressões que enfrento e resolve ignorar cada uma delas e que me dá de presente uma visão mais clara do mundo e de mim mesma.
É como disse Joan Didion: "Escrevo exclusivamente para descobrir o que estou pensando, o que estou observando, o que vejo e o que isso significa".
Mas a protagonista do conto não quer saber de nada disso. Ficou irritada com essa minha vontade de explicar tudo, de mergulhar no assunto, de trazer referências. Ela me diz:
"Você acha que só sabe escrever não-ficção porque só escreve isso! De que outro jeito você vai conseguir descobrir se é falta de prática ou de aptidão mesmo?"
Agora ela me pegou.
Então volto para a página do conto e tento de novo. Fico pensando quanto tempo vai levar para eu conseguir uma resposta.
Ansiosa para ler seu conto!!! Lembrei-me que quando eu tinha uns 15 anos eu decidi escrever um livro de ficção usando meus diversos amigos imaginários como personagens (porque sou geminiana, então não dava para ter apenas um). Escrevi num caderno de 200 páginas, odiei e joguei fora. Claro que me arrependo super, mas desde então eu acabei me afastando da escrita que só veio a ser resgatada com a newsletter. 😘
Pra mim o mais gostoso da ficção é isso: uma personagem que tem a liberdade de ser tudo que eu não tenho coragem de ser.