Judaísmo, cultura e experiência: minha vida como judia
Edição #271: Com a ajuda de Amós Oz e David Baddiel
Depois das últimas edições desta newsletter, quando falei sobre a identidade judaica, recebi algumas perguntas que conversam entre si: o que é ser judia para mim? Como exerço o meu judaísmo no dia-a-dia? Como esta cultura se manifesta?
Passei as últimas semanas com estas questões na cabeça. Eu poderia ir atrás de todas as definições canônicas sobre a cultura judaica - e até tenho algumas referências lindas para compartilhar com vocês -, mas prefiro trazer a minha perspectiva de mulher judia secular brasileira. É um pequeno recorte pessoal desta experiência imensa, uma fatia de um bolo milenar de inúmeros sabores diferentes.
Preciso começar pelas origens. Tanto a família do meu pai quanto a da minha mãe são judias e vieram da Europa Oriental. Todos moravam em pequenos vilarejos que já pertenceram a diversos países: Polônia, Ucrânia, Romênia, Moldova. Somos judeus ashkenazi. Minha avó materna, a Nunu, se identifica com a cultura russa. Mendinho, meu avô paterno, contava ter nascido na Bessarábia. Minhas avós nasceram no Brasil logo após seus pais chegarem ao País, nos anos 1930. Meus avôs vieram para cá de pequenos na mesma época. Os dois se lembravam da viagem de navio.
Todos buscavam segurança. Os pogroms, os ataques aos vilarejos onde mulheres eram estupradas e famílias inteiras eram assassinadas (isso te lembra algo?), eram frequentes, e a economia estava péssima desde a crise de 1929. Ao chegarem em São Paulo, construíram suas vidas de imigrantes em torno da comunidade judaica. O restante da família, todos aqueles que ficaram na Europa, foi massacrado no Holocausto. Nenhum dos meus avós teve primos, tios ou avós.
Ninguém era religioso - o judaísmo é muito maior do que uma religião. Meus avós paternos, em especial, cresceram com um certo ranço de rabinos e judeus ortodoxos. Eles ouviam em casa que a culpa do Holocausto era também de todos aqueles que quiseram ser diferentes, que não quiseram se assimilar. Para eles, os rabinos e seus chapelões eram para-raios de preconceito. Demorei anos para entender que aquela postura era culpar as vítimas. Como dizer para a moça de minissaia que foi assediada que ela não devia ter saído de casa com as pernas de fora.
Nós sempre celebramos as principais festas. Rosh Hashaná, o nosso ano novo, para comer maçã com mel. Yom Kippur, o dia do jejum e do perdão. Pessach, a festa da liberdade, minha eterna favorita, com as melhores comidas. Toda sexta-feira à noite, fazíamos o jantar de Shabat na casa da vovó Dorinha e do vovô Mendinho. Eu e a minha prima acendíamos as velas recitando as palavras Baruch Atá Adonai em um uníssono infantil, e todos os homens da família tinham a sua vez de fazer a reza do vinho, que na verdade era Coca Cola. Todas as crianças davam um gole.
Ninguém era kasher e ninguém frequentava a sinagoga do dia-a-dia - isso era coisa para as grandes festas. Nosso judaísmo sempre foi cultural. Minha identidade judaica foi construída ao longo de décadas destes jantares, com as histórias de meus pais e avós, e nos anos de estudo na escola judaica que frequentei até o colegial. Com a vovó Dorinha, aprendi a ler Philip Roth, Isaac Bashevis Singer e Amos Oz. Como eu queria ter mostrado a ela os livros da Delphine Horvilleur. Dei as sete voltas em torno de meu marido sob a Chupá na nossa cerimônia de casamento e tive já infindáveis discussões insanas com meus tios sobre quantos judeus nascem e quantos morrem por dia no Brasil. Nossos jantares parecem saídos de um filme do Woody Allen. Uma identidade formada mandando mensagens de Shabat Shalom toda sexta-feira no grupo da família e recitando a prece: Ano que vem em Jerusalém.
Não tem muito a ver com D's - mas veja só como não consigo escrever o nome inteiro, em um ato de respeito que aprendi nos tempos de escola. Se tanto, a minha espiritualidade é uma colagem de tudo que já li, ouvi e aprendi por aí das mais diversas religiões. Ainda assim, na hora da decolagem do aviaão ou quando passo nervoso esperando o resultado de um exame, as palavras surgem sozinhas: Shemá Yisrael, Adonai Elohênu, Adonai Echad. Ouve, Israel, Adonai é nosso D’us, Adonai é Um.
Eu gosto muito do que o Amós Oz diz no livro Os judeus e as palavras:
Judaísmo é uma civilização. E uma das poucas civilizações que deixaram sua marca em toda a humanidade. Religião é um elemento central na civilização judaica, talvez mesmo sua origem, mas essa civilização não pode ser apresentada como nada além de uma religião. Da fonte religiosa dessa civilização cresceram manifestações espirituais que ampliaram a experiência religiosa, transformaram-na e até mesmo reagiram contra ela: linguas, costumes, estilos de vida, sensibilidades características (ou talvez dever-se-ia dizer sensibilidades que costumavam ser característi-cas), literatura, arte, ideias e opiniões. Tudo isto é judaísmo. A rebelião e a apostasia na nossa história, especialmente em gerações recentes, também são judaísmo. É uma herança ampla e abundante.
No livro The God Desire, o comediante inglês David Baddiel brinca que o judaísmo está mais para um grande manual de ritos, palavras e gestos a ser seguido de uma maneira específica do que uma religião. Uma espécie de TOC coletivo. A questão de acreditar em D's ou não é secundária - precisamos apenas seguir os ritos.
Não questionei a minha identidade judaica durante os anos em que estudei na escola judaica. Era o ar que eu respirava. Estava em todo lugar - no clube, na colônia de férias, no sítio que o vovô Mendinho tinha com seus amigos, uma espécie de kibbutz em Itapecerica da Serra. Somente no colegial comecei a entender que meus hábitos, festas e rituais eram diferentes do da maioria.
Com a rebeldia da adolescência, veio um período longo de descrença. Uma tia falou para minha mãe, em tom de repreensão, que eu era a mais assimilada da família. Como se fosse algo ruim - mas sempre tive orgulho de fazer parte da sociedade em que vivo.
Ainda assim, o Judaísmo sempre foi central na minha vida. Ele se expressa na nossa culinária ashkenazi, cheia de salmão defumado, latkes, varenikes e guefilte fish. Conto vantagem de saber o melhor lugar para encomendar chalá para o final da semana. Tem que fazer a reserva por WhatsApp às quartas-feiras, pois a fornada sai nas quintas e acaba rapidinho. Ela é doce e salgada na medida certa e desmancha na boca. O Judaísmo também irradia da nossa cultura. Nosso humor, nossos autores, certos filmes e séries de TV. Se você não assistiu The Marvelous Mrs. Maisel, não sei o que está esperando.
Mas o 7 de outubro mudou algo para mim. Foi como um lembrete em carne viva: esta é quem você é. Quando vi, comecei a frequentar a sinagoga em algumas sextas-feiras. A acender as velas no Shabat. A ler mais, a mergulhar de novo no universo em que cresci. E isso tem me feito um bem tremendo.
Afinal, esta é a herança abundante que me coube.
Adorei ler o repertório. Sabe que guardadas suas devidas proporções e sem uma imensa tragédia no meio, é como me vi enquanto recifense/pernambucana. Acho que nascer em alguns lugares/grupos com uma cultura tão cheia de rituais faz a gente ser “diferente”. Tive uma fase distante e quando sai de lá, na ruptura, me vi querendo cozinhar certos pratos e festejar ainda mais umas datas. No aperto, no riso, na fluidez falo frases de lá. É uma identidade de fato e quando a gente abraça ela, nos tornamos maior. Estamos aqui esperando ler mais e mais da sua caminhada 💕
Carol, que texto belíssimo, fiquei muito entusiasmada com toda essa herança cultural que você trouxe. Muito obrigada por compartilhar.