Um recado aos assinantes: obrigada por todo o carinho e paciência nestas últimas semanas que fiquei sem publicar. As assinaturas pagas serão retomadas e na semana que vem já teremos uma edição exclusiva. Vocês não têm ideia de como esse apoio foi importante para mim.
Se um ditado atravessa os séculos, algum valor ele deve ter. Dentre um dos mais antigos - e clichês - é aque;e que diz que a arte salva. Ela com certeza pode confortar nossas almas, mas não nos defende de mísseis, balas ou facadas. Não nos protege de sequestros ou terroristas. Depois dos ataques brutais do dia 7 de outubro, passei por uma crise com a arte. Tentar buscar refúgio nela era como tentar usar agulhas de acupuntura para tratar os efeitos de uma bomba atômica. Não funcionava.
Passei estas semanas sem conseguir ler ou escrever. Qualquer assunto que não fosse a guerra me soava leviano. Por outro lado, se fosse relacionado ao conflito, perdia o sono e era rendida por uma tristeza sem fim. Ler os jornais ou acompanhar as notícias no Instagram me levava às lágrimas. Eu estava em carne-viva.
Na quarta-feira passada, algo mudou. Tinha combinado de ir ao teatro com três amigas para assistir King Kong Fran, uma peça criada pela atriz Rafaela Azevedo, que está em turnê pelo País. Quando marcamos o programa, semanas atrás, ele parecia um sonho: um jantar juntas e uma peça feminista. Mas chegou o dia e eu não sabia se queria ir.
Como ir ao teatro quando os reféns continuavam (e continuam) detidos em Gaza?
Como me permitir dar risada em meio a tanto sofrimento?
Como falar e ouvir de outros assuntos que não esse?
Uma das minhas amigas insistiu e resolvi encarar o programa. No trânsito até o teatro, me amaldiçoei de diversas formas. Por que eu havia me arrastado para fora da casca? Por que não podia simplesmente respeitar o meu luto e deixar ele passar?
Mas encontrei minhas amigas e pudemos falar de tudo e chorar juntas, embaladas no sake esushis. Trocamos histórias até alguém lembrar que a peça estava para começar. Corremos até o teatro com medo de ter perdido os ingressos no buraco negro que é a minha caixa de e-mails arquivados. (A vida se impõe).
Sentada no escuro ao lado delas, pensei que seria impossível me concentrar por um minuto que fosse. Não foi. Meio performance, meio monólogo, King Kong Fran é como um acidente em câmera lenta do qual você não consegue desviar o olhar. E dar risada, aplaudir, sentir no fundo todo o machismo e a violência que a personagem criada por Rafaela Azevedo denuncia com um humor perigoso.
Difícil explicar a peça sem dar spoilers (e não vou dar, pois desejo do fundo do coração que você assista se tiver a oportunidade). Fran entra no palco vestida de gorila, dentro de uma jaula, com um colant transparente por baixo e uma missão: constranger os homens da plateia com uma inversão radical de posições. Se no mundo real somos nós, mulheres, que temos que lidar com tanta violência moral e física, em King Kong Fran a vez é deles. Fran avisa: aquela é uma peça de terror.
A proposta me fez lembrar do filme francês Eu não sou um homem fácil (tem no Netflix) e do livro O poder, de Naomi Alderman. Ambos invertem o jogo de poder para mostrar como seria se as mulheres fossem o sexo forte. O parecer inevitável, no entanto, é que o que começa como uma revenge fantasy divertida logo se revela como uma outra face do horror. Afinal, sempre que existe hierarquia de poder, existe algum tipo de abuso. Por que nós mulheres seríamos diferentes?
Como você se sente vendo os homens da plateia passarem pelos constrangimentos que Fran impõe? Com um jeito meio sexy, meio borderline, embalada pela direção musical de Letrux, Fran escancara com humor o que tantas mulheres vivem no dia a dia. No começo, é difícil não rir. Depois, fica cada vez mais fácil. Bem aos poucos, vemos as gargalhadas perderem a força.
A peça termina e meus braços doem de tanto aplaudir o talento e a coragem daquela mulher. A guerra, percebo, já não arde tanto. Estou completamente envolvida na potência criativa de Rafaela Azevedo, que usa a arte como formato de vingança. A arte de fato salva, percebo em êxtase. O lembrete é claro: igualidade entre os gêneros sempre - e abaixo a violência.
Volto para casa com um peso menor sobre meus ombros. King Kong Fran é a prova de que o pior que pode nos acontecer sempre tem o potencial de se tornar material nas mãos de gente talentosa e criativa.
A guerra segue doendo demais aqui e eu vou retomando aos poucos a minha rotina de escrita. Mas voltei a ler, bem aos poucos. Uso o gerúndio para mostrar que este é um trabalho em construção. Vou me encontrando em meio aos escombros e construindo uma nova pele.
Obrigada pela paciência de vocês.
Estamos de volta.
E se você quiser assistir King Kong Fran, corre: as temporadas são curtíssimas e os ingressos esgotam feito pãozinho quente.
É duro viver enquanto há sofrimento. Meu marido é ucraniano, não sei se essa guerra também te atravessou. Aqui em casa, é uma lembrança diária de que é preciso buscar felicidade sempre. Fato é que sentimos mais quando o terror está mais próximo de nós, mas, mesmo lá onde as guerras acontecem, a vida segue...
O trabalho em construção do gerúndio deve ser eterno, ainda que as críticas sejam severas. Adorei a frase, ela me abraçou : )