Em janeiro de 2020, achei que havia chegado a minha vez de ser cancelada. Eu já trabalhava com internet havia quase uma década e aquilo nunca havia acontecido comigo até então. Eu produzia conteúdo sobre finanças para mulheres, para ajudá-las a cuidar melhor do seu dinheiro, pagar as dívidas e investir. Meus vídeos e posts eram do bem. Ninguém nunca havia me odiado online antes e eu não sabia como agir.
O pivô foi um post que eu achava que seria óbvio: disse que as férias escolares não haviam sido pensadas para as mães que trabalhavam. Recebi centenas e centenas de comentários de gente que dizia que eu estava jogando a responsabilidade nos professores, que eu não podia terceirizar a educação e o cuidado da minha filha, que eu não respeitava a escola, e assim por diante. Fui acusada de ser uma mãe ruim, de ser egoísta e de não considerar o trabalho dos outros. Como explicar que eu não queria dizer nada daquilo?
O meu ponto era tão simples - pelo menos na minha cabeça. Tente trabalhar - de casa ou no escritório - com uma criança entediada. Não dá. A cada quinze minutos, vem uma reclamação diferente. Mãe, tô com fome. Mãe, posso usar o iPad? Mãe, vem brincar comigo? Se você tenta explicar que está trabalhando, que não é legal ser interrompida, corre o risco de aquilo virar um tsunami: Mãe, você não gosta de mim! Se você gostasse, não iria trabalhar tanto! Choro, lágrimas, gritos e bateção de pé.
Eu não queria dizer que a escola não deveria parar, que os professores não deveriam ter férias, ou que eu queria largar minha filha e não ter que lidar com a maternidade. Estava apenas tentando fazer um desabafo: nossa sociedade ainda não enxerga o cuidado com os filhos como um trabalho. É impossível entreter uma criança de férias e fazer qualquer tipo de trabalho produtivo sem uma rede de apoio, televisão ou tablet.
A ironia não demorou dois meses para bater à porta. A pandemia chegou em março, as escolas fecharam e se eu estava preocupada com um mês de férias, o universo ria da minha cara e dizia: tente se virar com uma criança em casa um ano inteiro. O bônus indigesto foram as aulas online: agora eu não só precisava entreter a Bia e trabalhar, como também garantir que ela assistiria às aulas e terminaria o ano alfabetizada. Quem viveu aquilo sabe que foi uma modalidade especial de tortura. A Bia gritava eu odeiooooo aula virtual e eu queria entrar no coro: eu tambéeeeem odeeeeioooooo.
Eu tento relembrar tudo aquilo para tentar pegar mais leve comigo mesma nestas férias de julho. Estamos de novo no mesmo cenário: uma mãe que trabalha, desta vez com duas filhas em casa. A Bia já está maior e eu estou mais organizada, então estamos vivendo uma pequena maratona de programas nas casas das amigas dela. Um dia a amiguinha vem, no outro a Bia vai. Com a Izzy - que resolveu agora que só quer ser chamada de Dora, minha pequena Isadora - conto com a ajuda da minha funcionária e das brincadeiras no parquinho. Sou cercada de privilégios e tenho consciência deles - e ainda assim.
É impossível me concentrar por mais de meia hora: em algum momento, entra alguém na sala de TV/meu escritório com algum pedido. Autorização para assistir YouTube, um lanchinho, uma volta no quarteirão, brincar com o carrinho de sorvetes, jogar bola, correr pelo corredor, vale tudo para interromper a mamãe.
(A situação saiu tanto de controle que agora se alguém pergunta pra Dora como é que a Bia fala, ela dá um sorriso sapeca do alto dos seus quase 2 anos e grita MÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃE!!!)
Este é o tipo de cena que se tornou tão comum em casa que eu poderia viver num misto de irritação constante com uma postura blasé de quem acredita que este é simplesmente o jeito que as coisas são. Aquela combinação de sentimentos que parece não garantir nem ao menos o direito de reclamar. Um barulho de fundo irritante da cacofonia gloriosa e absurda da vida em família.
Mas ao mesmo tempo em que tento sobreviver a mais um mês de férias, estou fazendo uma pesquisa para um projeto que um dia pode virar um livro (se alguém me deixar escrever) e lendo uma série de ensaios de mães escritoras sobre a maternidade. Neles, comecei a encontrar reflexos do meu dia-a-dia:
"A culpa me envolve. Estou com raiva da minha mãe por não ter sido minha mãe. Pronto, falei. Estou com raiva - e isso é mais difícil de dizer - da minha filha por sempre me interromper. Geração após geração, é a mesma história. Minha filha me diz uma noite, 'Você não gosta de mim porque eu sempre a incomodo'. Eu carrego isso comigo, essas palavras, uma tristeza tão profunda que expressá-la seria seria voar para longe." (Susan Griffin numa tradução livre do ensaio Feminismo e maternidade de 1974).
Griffin estava tentando desenvolver uma teoria feminista da maternidade, mas diz que tem apenas fragmentos de ideias, anotaçõe desencontradas. "Temos apenas breves iluminações que devemos registrar entre as interrupções, colocadas lado a lado, na esperança de dar sentido a tudo isso algum dia mais tarde".
Jane Lazarre, no ensaio The Mother Knot, de 1976, vai além e fala que o amor de mãe é "o aprendizado constante de tolerar ambivalência". Ambivalência, pois os filhos irritam e são o que temos de melhor na vida. Uma descrição maravilhosa desta ambiguidade está nos diários de Adrienne Rich (datada de novembro de 1960):
"Meus filhos me causam o sofrimento mais requintado que já vivi. É o sofrimento da ambivalência: a alternância assassina entre o ressentimento amargo e os nervos à flor da pele, e a gratificação feliz e a ternura. Às vezes, em meus sentimentos em relação a esses pequenos seres sem culpa, pareço um monstro de egoísmo e intolerância. Suas vozes desgastam meus nervos, suas necessidades constantes, acima de tudo sua necessidade de simplicidade e paciência, me enchem de desespero por meus próprios fracassos, desespero também por meu destino, que é servir a uma função para a qual não fui preparada. E, às vezes, fico fraca por causa da raiva contida. Há momentos em que sinto que somente a morte nos libertará um do outro, quando invejo a mulher estéril que se dá ao luxo de se arrepender, mas vive uma vida de privacidade e liberdade.
"E, no entanto, em outros momentos, eu me derreto com a sensação de seu desamparo e charme e irresistível beleza - a capacidade deles de amar e confiar - a firmeza, decência e autoconsciência. Eu os amo. Mas é na enormidade e inevitabilidade desse amor que reside o sofrimento."
Leio estas mulheres e me sinto menos sozinha. Não é um remédio saber que o que sinto não é tão distante do que elas sentiram e registraram. Tanto tempo se passou, quase meio século, e os dilemas e dificuldades ainda são os mesmos. A questão do não-conformismo. E ainda assim, estes textos trazem um alento. Não sou monstruosa por me irritar, por precisar de tempo, por não poder parar a cada vez que elas pedem por mim. Esta é, afinal, a experiência da maternidade em nossa sociedade, ainda que enfeitada por tantos privilégios quanto os que me rodeiam.
Minha vida mudou muito desde janeiro de 2020. Encerrei meu negócio, tive mais uma filha e comecei um mestrado. Minha vida agora é em casa. O que eu mais sinto falta é do meu escritório: o reino - que me parece agora encantado - dos adultos. Sair de casa todo dia maquiada, ouvindo um podcast no trânsito, para ir a um lugar onde todos vão trabalhar juntos. É como um sonho, um resquício de um mundo que não existe mais para mim. Escrevo este texto de calça de moletom enquanto ouço a Bia e a Doraa brincando do outro lado da porta fechada. O som é doce e a minha vontade é de parar tudo e me juntar a elas. É o que vou fazer. Antes de colocar o ponto final, penso: a volta às aulas está logo aí.
Carol, sinta-se abraçada. Não por coincidência, meu ultimo tecto foi sobre as férias escolares. Fui irônica, claro, mas quase não enviei com medo de ser cancelada. Vou deixar o link aqui, caso você tenha um tempinho pra ler: https://open.substack.com/pub/andreameconta/p/64-uma-ideia-de-negocios
Que texto lindo, me identifiquei muito. É muito injusto que a nossa sociedade transforme a ambivalência materna em fonte de culpa e frustração quando essa alternância de sentimentos é totalmente humana e natural. Afinal, quem ama ou deseja algo, seja lá o que for, 100% do tempo? Obrigada por compartilhar 💜