Alerta: texto cheio de spoilers sobre o livro A marca humana, de Philip Roth, e sobre o filme Pobres Criaturas.
Tenho pensado muito sobre o decoro, aquela força que nos impele a determinados tipos de comportamento considerados adequados. Outro dia vi no Instagram a definição de tradição: peer pressure de gente morta. Herdamos tantas crenças a respeito do que é certo e errado que chega uma hora em que não sabemos mais o porque de agirmos de um determinado jeito.
Antes da revolução sexual dos anos 1960 e de todas as transformações sociais, econômicas e tecnológicas que vieram na sequência, os comportamentos apropriados eram outros. Sexo só depois do casamento, regras rígidas sobre o que vestir, a ideia de que o chefe tem sempre razão. Interessante pensar como tudo isso é aleatório e em constante evolução: no mundo pré-pandemia, tênis no escritório era impensável. A moda mudou junto com o contexto que vivemos e, de repente, o código de vestimenta é outro.
O tema está na minha cabeça desde que comecei a ler A marca humana, de Philip Roth. O livro é uma tragédia contemporânea: a história da queda de Coleman Silk. Antigo decano de uma prestigiosa faculdade americana, ele decide se demitir depois de ser acusado de racismo por seus alunos. Justo ele, que se vê como uma vítima constante do antissemitismo contemporâneo. Acompanhamos Silk, um homem que é profundamente detestável, implodir a sua vida. Aos 71 anos, viúvo, resolve ter um caso com a faxineira da faculdade, uma mulher analfabeta de 34 anos. Escândalo. Silk vê o mundo se virar contra ele. Para quem olha de fora, é fácil falar: tudo errado.
O ex-decano caído em desgraça tem um segredo: na realidade, ele é um homem negro, e não o judeu branco por quem ele se faz passar. Aos 18 anos, resolveu que não seria definido pela cor de pele. Não queria ser um nós e pertencer ao povo negro, e sim um eu, marcado pela singularidade. Ele passa a se definir como homem branco e vê, meio descrente, o mundo acreditar no que diz. Ele dá as costas a sua família, decide se inventar e mandar uma banana ao que chama de "tirania do decoro". Ele se recria como intelectual branco judeu.
Ainda assim, é impossível não ter empatia com Silk, por mais questionável que seja moralmente. O que vemos nas páginas é alguém que deseja viver de acordo com as próprias regras, sem dar a mínima para o que os outros podem pensar. Que quer que os outros o vejam de acordo com a lente que ele mesmo definiu.
"O decoro é uma força multiforme, uma dominadora que assume mil e um disfarces, que se for necessário é capaz de infiltrar a responsabilidade cívica, a dignidade das elites, os direitos das mulheres, o orgulho dos negros, a solidariedade étnica ou a sensibilidade ética emocional dos judeus", proclama Silk em um dos vários ataque de fúria que testemunhamos no romance.
A invenção de Silk passa pela mentira - e foi com deslumbramento que assisti a invenção de Bella Baxter, a protagonista do filme Pobres Criaturas, do cineasta grego Yorgos Lanthimos. A invenção de Bella acontece com a profunda sinceridade com que ela decide tratar todos à sua volta.
É uma honestidade que nasce da ingenuidade: Bella é um bebê no corpo de uma mulher, uma criatura de um doutor Frankenstein vitoriano. A personagem é interpretada com pura genialidade por Emma Stone, que mostra com o corpo, expressões e fala a saída da infância e o caminho para a maturidade. Bella Baxter quer conhecer o mundo e ser definida pelas próprias regras, e não pelos limites impostos pelo pai-criador chamado por ela de God. Um deus particular.
Ela descobre o próprio corpo, o prazer e parte em uma exploração do mundo e de si mesma. Bella não sabe se portar: fala e se comporta de maneira que aqueles que a cercam consideram inapropriada. Somos nós, no entanto, que assistimos com deleite essa fantasia maravilhosa do outro lado da tela, que conseguimos dar o verdadeiro nome para tudo aquilo: liberdade. Pobres Criaturas é um conto de fadas monstruoso.
Os homens da vida de Bella tentam aprisioná-la e moldá-la de alguma forma: pelas convenções, pelo corpo. Mas ela se recusa e ignora as regras que não fazem sentido. O mundo de Bella Baxter é só dela - e os outros que lutem. Sexo, amor, amizade. Como falar, se vestir, dançar. A ousadia dela não é necessariamente fruto da coragem, mas sim de um lugar de puro desejo e curiosidade. Ao andar pelo mundo de calçolas de seda, jaquetas bufantes e botinhas brancas, Bella escancara quão frágil pode ser a masculinidade.
Não é à toa que sexo é um tema tão presente em Pobres Criaturas e em A marca humana. Sexo é lugar de libertação e desejo. Estamos todos nus ali e as regras de decoro caem por terra. A cama pode ser espaço de fantasia ou realidade, a gosto do freguês. A revolução sexual de Coleman Silk e Bella Baxter é um espelho da nossa própria trajetória como sociedade.
Pobres Criaturas é um filme que nos deixa de queixo caído. É pura ousadia, visualmente estonteante. Surpreende, pois nos tira de uma zona de conforto cinematográfica. É incômodo, surrealista, engraçado, irônico. E nos presenteia com uma protagonista que é, acima de tudo, uma mulher que não se deixa prender por nenhuma convenção.
Essa autenticidade que busca Bella é matéria de sonho. Que delícia ver uma mulher que consegue alcançá-la - ainda mais com aquelas botinhas.
Se você ainda não assistiu ao filme, minha sugestão: corra logo ao cinema mais próximo. É um filme que merece ser visto na telona, com todo o seu esplendor.
Só quando você contou a sinopse eu reconheci que assisti um filme adaptando esse livro, "The Human Stain" (parece que aqui traduzido como "Revelações" kkkk), com o Anthony Hopkins e a Nicole Kidman! Encontrei por acaso um dia na Amazon. Engraçado que é de 2003, mas parece que foi feito ontem, baseado nos cancelamentos do Twitter. Escrevi uma crítica de Pobres Criaturas também, por isso vim aqui correndo ver a sua, acho que estamos na mesma sintonia. É uma delícia ver mulher livre no cinema, por favor tragam mais!
Acabei de assistir e vim correndo reler essa news perfeita!!!
O filme é mesmo genial, é lindo ver a Bella se libertando e evoluindo quando sai explorar o mundo - conhecimento liberta! É tanta analogia que da pra fazer que nem sei kkk