Parece que alguém resolveu combinar com o mundo que preciso prestar atenção a uma mensagem. Ouço-a no documentário que estou assistindo, na sessão de terapia, nas conversas com meu marido. Minha mãe me chama de lado pra dar a sugestão, falando com tato, com certo medo da minha reação: você precisa aprender a ser menos brava.
Eu não sei bem como, mas me tornei uma pessoa mais dura e impaciente. Não aguento ver um motorista fechando outro sem sentir uma palpitação de ódio. O vizinho que resolve ficar conversando na garagem e não percebe que estou esperando ele me dar passagem para eu sair consegue destruir o meu humor por uma boa meia hora. Uma discussão boba num grupo de WhatsApp me deixa enlouquecida. Não sei nem o que falar das birras da Bia em casa: chega uma hora que eu perco o controle, grito e dou bronca, ela chora e grita também, a coisa só piora.
Quando me acalmo, percebo que minha atitude é tão eficiente quanto tentar enfiar uma linha na agulha com uma martelada. Seria tão mais inteligente ajudar a Bia a se acalmar com um abraço e alguma brincadeira para aliviar a tensão, para depois conversarmos com calma sobre o que ela está fazendo de errado. Mas na hora, sou um vulcão louco em erupção.
Ontem à noite, comecei a assistir à série documental Live to 100: Secrets of the Blue Zones no Netflix. As zonas azuis são os lugares no planeta onde há a maior concentração de pessoas centenárias e a série tenta investigar o segredo de tanta longevidade. O primeiro episódio se passa em Okinawa, no Japão, e o segredo da primeira senhorinha entrevistada é… não ficar brava com qualquer besteira.
Não sei se acredito que esse meu fogo interno pode diminuir minha expectativa de vida, mas percebi que estou desperdiçando muito dela com bobagem. Já sei que não adianta nada ficar tão brava com a Bia a cada vez que ela fica no iPad ao invés de se arrumar para sair, ou resolve bater o pé porque não quer ir para a natação. Os meus gritos, decretos e ameaças só atrapalham - e contribuem para a manutenção de um clima péssimo em casa.
Olho para trás e sei exatamente de onde veio tanta ira assim. Lembro do medo que sentia de me comportar mal e deixar meu pai irritado. Penso no meu avô, que era tão duro que nos cumprimentava com um aperto de mão - eu que precisava tentar desarmar tudo aquilo com um beijo apertado e um abraço, que era recebido com uma careta divertida. Vem uma certeza: eu não quero repetir o mesmo formato com minhas meninas.
Tenho trabalhado muito a culpa que sinto por fugir dos moldes da mãe ideal, aquela que não fica brava nunca nem perde a paciência. Sei que ela só existe nos filmes e contos de fada - e que a realidade é muito mais ambígua e complexa. Não me sinto culpada por sentir essa raiva. O que sinto é um cansaço mesmo, é um desejo de me reinventar.
Longe de mim querer ser Poliana. Sei que a raiva que sinto às vezes revela muito sobre meus medos, frustrações e anseios. Tenho anos de estrada de terapia e sei identificar - algum tempo depois do fato - de onde surgiu aquela minha explosão. A raiva vem quando as coisas saem do script rígido que desenhei para a vida e minha família, uma herança familiar indesejada como aquele vaso feio que era de uma tia avó e você não sabe muito bem onde colocar. Depois que a braveza passa, entendo que ela pode ser também um sinal de que estou desrespeitei limites e meus valores foram atropelados. Mas o que acontece se o ataque estiver simplesmente assinalando que ninguém conseguiu alcançar um ideal de comportamento inatingível que resolvi adotar?
Existe toda uma visão social negativa a respeito da mulher raivosa - é uma construção patriarcal que serve para nos aprisionar. Não precisamos de carcereiros quando nós mesmas controlamos as nossas reações com medo da forma com que seremos percebidas pelos outros. Como doidas, descontroladas, hormonais, inaptas para lidar com as grandes questões da vida. Deve estar de TPM. Mas o que acontece quando você se torna uma pessoa que sente raiva por qualquer coisa? Com um distanciamento mínimo, consigo enxergar: passei do ponto.
Outro dia, ouvi em um podcast sobre como sentimos raiva das coisas mais tontas, mas vivemos insensíveis ao que mais importa. Quero redirecionar minha raiva para as injustiças, a violência, a desigualdade, o descaso. O problema não pode ser o atraso de quinze minutos na hora de sair pra escola.
Voltamos então a meditar aqui em casa. Toda noite, na hora de colocar a Bia na cama, fazemos uma sessão guiada de dez minutos. Ao longo do dia, repito para mim mesma: está tudo bem. E se não estiver, se o monstro vermelho atacar, já sei que faz parte. Está tudo bem. Está tudo bem. Está tudo bem.
Carol, obrigada pelo texto tão humano, tão sincero. Por aqui, percebi há alguns meses que não aprendi a lidar com a raiva. O que sabia, era como escondê-la por não ser "a hora certa" para extravasar. Acabei descobrindo por meio de sintomas no corpo. Agradeço muito por ter começado a tomar mais consciência disso e no meu caso, a atividade física constante foi o que mais me ajudou...na época que o assunto estava em alta por aqui, uma amiga me enviou uma aula de Tae Bo no Youtube (engraçadíssima, por sinal). Se quiser, te passo o link, porque continua sendo uma aula que faço por 20 minutos para extravasar a raiva e suar um pouco :D
Nossa, me identifiquei tanto com o texto. Eu sou essa mãe brava na maioria da vezes. É extremamente difícil sair desse ciclo, principalmente porque quase sempre meus limites foram extrapolados (e nem sempre eu posso fazer algo sobre isso), mas a Yoga e a meditação me traz pro centro do "aqui e agora". Não é fácil, mas seguimos tentando.