Você fala demais, ela me disse tantos anos atrás. Estávamos no meio de uma briga – a briga que encerrou uma amizade de quase uma década – e aquela frase foi feito míssil teleguiado a um ponto central dentro de mim. Aquele lugar que esconde os temores e a vergonha e você torce para que não venha à superfície.
Durante a adolescência, minha insegurança segurava a rédeas curtas a crença de que eu era interessante. Mas aos poucos fui exercitando aquele músculo. Quando aquela briga aconteceu, eu confiava em mim. No entanto, ouvir aquilo ardeu e doeu e funcionou como poção mágica: diluiu toda a raiva da discussão e a transformou em vergonha. Mesmo achando aquilo um absurdo no plano racional, abracei aquela crítica e a carreguei comigo durante muitos anos.
Parei de pensar na briga, na amiga e até na frase – mas ela ficou alojada dentro de mim. Só fui relembrar de tudo aquilo quando comecei a fazer os exercícios d’O caminho do artista, livro de Julia Cameron.
Você pode me chamar de exagerada, mas este livro teve um papel transformador na minha vida. Quando comecei a melhorar do burnout no ano passado, resolvi seguir à risca o processo de recuperação da criatividade proposto no livro. Ao longo de 12 semanas, com o apoio de uma série de exercícios e das páginas matinais, vi ressurgir muitas lembranças que estavam enterradas fundo dentro de mim.
No meio de uma das tarefas, lembrei da briga. Eu estava no trabalho. Lembrei de voltar para casa de carro naquela noite angustiada e envergonhada. Eu era aquela pessoa que falava demais.
Comecei então a me policiar. A ter pavor de monopolizar as conversas. De fazer uma contabilidade mental de quanto tempo cada pessoa falava num jantar ou festa, para garantir que eu não atravessava a fronteira que marcava o tempo do outro, não cruzava a linha imaginária que me tornava uma chata autocentrada. Chega de mim, eu quero ouvir de você.
Aquela frase grudou na minha pele, assim como algumas outras, e me acompanhou por muito tempo. Demorei a entender que aquilo não era bem assim. Que eu podia falar. Que eu tinha o direito de monopolizar a conversa quando a urgência e a necessidade ditassem (olha eu aqui fazendo desculpas e criando condições de novo).
Nesta semana, li o ensaio Sobre ter um caderno, da Joan Didion, após uma aula maravilhosa com a Tayná Saez. E dei de cara com isso aqui:
“É um ponto difícil de admitir. Nossa criação vem de uma ética segundo a qual os outros, quaisquer outros, todos os outros são por definição mais interessantes do que nós mesmos, que fomos ensinados a ficar retraídos, a praticamente nos apagar”.
O lugar onde esta lógica é invertida é nos nossos cadernos, diz Didion. É quando escrevemos que o nosso eu é revelado.
Comecei a escrever por influência direta da série “Confissões de adolescente”. Eu queria ser madura como Diana, a personagem vivida pela própria Maria Mariana, autora do livro que inspirou a série. Queria escrever sobre tudo. Foi ali que nasceu o sonho de ser escritora.
Comprei um caderno simples e um papel de embrulho com uma estampa divertida. Encadernei-o sozinha e comecei a escrever. Desde então, meus cadernos sempre me acompanharam.
Só percebi anos depois que parei de escrever logo depois da bronca daquela amiga – e agora consigo entender o porquê. Como se escrever para mim fosse uma indulgência egoísta.
Foi só em 2018, no meio de uma crise familiar, que voltei a escrever. A preencher cadernos e cadernos com sonhos, imagens, cenas que testemunhei, poemas. Preocupações, medos, inspirações.
Didion diz no ensaio que tudo volta, e ao olhar para os meus cadernos, me encontro com a Carol de 21 anos que viaja de mochila sozinha pela Europa, com a Carol de 12 anos que sonha em se apaixonar pela primeira vez, com a Carol de 33 que quer engravidar e não consegue. E com tantas outras versões minhas.
Escrever e ler sobre a importância da escrita me deixa com uma sensação vaga de que algo grandioso pode acontecer caso eu não desista, misturada com o desejo de ser Joan Didion, de ser outra, melhor, mais afiada.
Me lembro então da jornada que percorri para entender que amo quem sou e o momento que vivo e que o único caminho é continuar a escrever.
Fico impressionada quando percebo o quanto me vejo na sua escrita. Ainda escuto essa voz que me diz que eu falo demais, penso demais e até mesmo que acho que sei mais que todo mundo. É reconfortante saber que posso superar essa voz e ser uma versão melhor de mim.
adorei a news dessa semana. me identifico muito com esse lugar de tentar não falar muito, por ser uma pessoa expansiva, mas, ao mesmo tempo, na escrita eu sinto que me revelo a mim mesma em facetas que eu nem imaginava. amo a joan didion, mas não cheguei a ler esse ensaio, valeu o grifo e a dica, vou correndo procurar!