O texto de hoje é diferente. Deixo de lado a crônica e chamo um ensaio para me ajudar a processar o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos. As reflexões surgiram nos meus estudos para o mestrado - e depois quero saber a sua opinião sobre este formato de texto. Me conta o que achou? Criamos esta newsletter sempre juntos.
As pessoas têm faces morenas—além do mais, elas têm tantas faces! São realmente da mesma carne que nós? Possuem mesmo nomes? Ou são meramente uma espécie de matéria morena indiferenciada, quase tão individuais quanto as abelhas ou os pólipos corais? Emergem da terra, suam e passam fome por alguns anos, e depois afundam de volta aos montes de pedras sem nome do cemitério, e ninguém nota que desapareceram. E até os próprios túmulos logo se dissolvem no solo.
George Orwell, no ensaio Marrakech
Enquanto estudava para o mestrado, na semana passada, dei de cara com essa passagem de Orwell, escrita em 1939, quando visitou o Marrocos. Ela caiu mal dentro de mim e me lembrou do que foi impossível esquecer: a execução de Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro com esquizofrenia, durante uma abordagem pela Polícia Rodoviária Federal.
A brutalidade foi completa, quando agentes policiais o trancaram em uma viatura após usarem spray de pimenta e gás lacrimogêneo. Como disse Ariela Kilinsky em sua newsletter, uma câmara de gás improvisada. Na segunda-feira, descubro que a tática já foi utilizada em outras pessoas e que tem até um vídeo para cursinhos preparatórios onde um policial ensina o método.
O que explica tamanha violência? Quando li a passagem de Orwell, citada no magistral Orientalismo, de Edward W. Said, consegui compreender ao menos em parte. Orwell chega a Marrakech e tem dificuldade de acreditar que está “caminhando entre seres humanos”. Para ele, assim como para tantos, é impossível enxergar humanidade na “matéria morena indiferenciada”.
Orwell se pergunta: “são realmente da mesma carne que nós?”. Quando os outros são vistos como parte de outra espécie por causa da sua cor de pele, acredita-se que a sua dor não é igual à nossa e eles se tornam descartáveis. Não sofrem como nós – e a sua ausência não é sentida como a nossa. “Ninguém nota que desapareceram”, diz o autor.
Em Orientalismo, Said explica o processo de criação do conceito de Oriente, uma ficção que engloba centenas de países e incontáveis culturas e as reduz a uma única noção, lotada de preconceitos e clichês. Na obra, ele fala de uma geografia imaginária que nos separa entre “nós” e os “outros”. Essa noção é arbitrária e limita o outro a alguém inferior, que precisa ser corrigido e civilizado. A discussão é sobre o “Ocidente” e o “Oriente” (dois conceitos ficcionais), mas é impossível ler o livro não pensar em como ele pode ser aplicado à questão racial.
Quando penso nos policiais que assassinaram Genivaldo, não consigo enxergar outra explicação. A cor da pele da vítima, de certa maneira, diminui a sua humanidade perante o olhar do policial.
Converso com a minha sogra e ela me fala do conceito de identificação projetiva, um mecanismo psicanalítico de defesa que busca nos isolar do mundo. Atribuo ao outro e projeto nele os meus próprios aspectos que desejo negar. A maldade é do outro, nunca minha. Como na defesa dos policiais, que afirmaram que utilizaram contra Genivaldo apenas “técnicas de menor potencial ofensivo”. A selvageria é do outro, eu sou civilizado.
Busco explicações nos livros. Penso na história da discriminação racial, na ausência de reparação contra a escravidão, nas dificuldades, dores e indignidades sofridas pela população negra no Brasil e no mundo. Tento entender, mas o exato me escapa. Não é possível. A brutalidade não pode ser racionalizada.
Bertolt Brecht (1898-1956)
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
É assim que me sinto, que a qualquer hora vai ser comigo ou algum familiar meu e não haverá nada a ser feito :-(
Foi uma excelente reflexão com eles. Enriqueceu demais a conversa. Eu que agradeço por dividir suas reflexões conosco