Quando penso em um harém, milhares de associações surgem para mim: odaliscas, poligamia, as Mil e Uma Noites e a coitada da Sherazade tendo que lutar para achar mais uma história para contar ao tal do rei da Pérsia. Aquele que resolveu, num afã de vingança, assassinar cada uma das suas esposas logo após a noite de núpcias, depois de ser traído por sua primeira mulher.
Na história da arte ocidental, o harém já foi representado de várias formas. Todas, no entanto, têm algo em comum: o maior símbolo do harém são as mulheres com poucas roupas e muita disponibilidade sexual.
O quadro “O banho turco”, do francês Jean-Auguste Dominique Ingres, pintado em 1862, ilustra bem este ponto:
Descobri, graças ao meu mestrado, uma autora egípcia que mudou minha forma de pensar: Leila Ahmed, professora de Harvard e especialista em feminismo islâmico.
“O harém pode ser definido como um sistema que permite que homens tenham acesso sexual a mais de uma mulher. Ele pode também ser definido, com a mesma precisão, como um sistema onde as mulheres que fazem parte da família de um homem – esposas, irmãs, mãe, tias e filhas – dividem o seu tempo e seu espaço de habitação, o que permite que as mulheres têm acesso frequente e fácil às outras mulheres da sua comunidade” – (Etnocentrismo ocidental e as percepções do harém, Leila Ahmed).
Ahmed explica que a própria palavra “harém” tem duas traduções: proibido e sagrado. O espaço do harém é inviolável – lá, os homens não entram.
“No espaço delas, as mulheres pode ser, e normalmente são, livres juntas, trocando ideias e informações, inclusive sobre os homens, sem correr o perigo de serem ouvidas pelos homens”, explica Ahmed.
Quando comecei a compreender, percebi o quanto há de preconceito com as mulheres árabes. O harém é um símbolo para os ocidentais de opressão e de um sistema de privilégios sexuais dos homens. Aos poucos, passei a entender que ele, na realidade, é (também) uma estrutura que cria um espaço para mulheres viverem entre elas, sem a interferência masculina.
Existem, é claro, uma série de senões. No harém, quem manda é a matriarca – mas tudo que acontece fora dele depende da boa vontade do patriarca. Além disso, há também o problema da segregação – quando ela é forçada ou apresentada como uma saída para “garantir a segurança” das mulheres, tem algo de errado aí. Mas será que não podemos pensar no harém como um espaço de liberdade entre mulheres?
Foi quando li uma parte da autobiografia de Ahmed que entendi que havia, de fato uma outra forma de pensar sobre o assunto. Em “A border passage” (só disponível em inglês, infelizmente, mas maravilhoso), ela conta como foi o harém da infância dela, nos anos 1940 no Egito:
“Ir para Zatoun (residência dos avós e local onde moravam as mulheres da família) e passar algumas horas com minha avó e as outras mulheres era sem dúvida uma fonte enorme de prazer e apoio emocional e psicológico. Era uma forma de dividir e renovar a nossa conexão, de entender como lidar com o que quer que estivesse acontecendo nas vidas delas com seus maridos e filhos”, ela conta.
Ao ler os detalhes de como funcionava a vida naquela estrutura, entendi que eu também tenho os meus haréns.
O maior dele funciona na casa da minha avó materna. Minha família sempre foi centrada na figura dela e das mulheres que a rodeavam. Nossos almoços dominicais – que depois migraram para as terças-feiras – sempre foram o momento das mulheres. Tudo o que eu queria, quando criança, era me sentar na mesa delas: ouvir as histórias e participar das conversas da minha avó, minha mãe, tias e primas era o melhor momento da semana.
Os meus tios e o meu avô tinham um papel secundário. As mulheres é que eram (e continuam sendo) as protagonistas da família. Meu tio é divertidíssimo e muito amado, o caçula e protegido da família. Ainda assim, o reino sempre foi das mulheres.
Este espaço físico segue firme e forte, mesmo quando não estamos na casa da minha avó: lá temos um lugar maravilhoso para discutir casamentos e separações, fofocas da comunidade, nossos filhos, nosso trabalho, nossas vidas.
Meu primo sempre brincou comigo que eu já nasci fazendo parte da mesa dos adultos. Ao ler os textos da Leila Ahmed, entendi: o que eu queria era mesmo fazer parte daquele harém.
Mas não tenho só ele: encontro um harém a cada vez que saio com as minhas amigas para conversar. Quando, numa festa ou jantar, vou para onde estão todas as mulheres. Quando discuto um livro ou texto com uma amiga, o que sempre transborda para nossas vidas, as delícias e agruras de sermos quem somos.
A grande questão é que são haréns facultativos. Eles se montam e desmontam na nossa conveniência. Escolhemos quando queremos incluir os homens. Nossas escolhas são determinadas por nós mesmas, e não há uma figura paterna para tomar decisões por nós. Ainda assim, li o livro de Ahmed como quem sonha em fazer parte daquele mundo maravilhoso – só para depois entender que eu cresci num lugar muito semelhante àquele.
Amiga, que texto precioso. Me lembrou o livro "Bordados", da Marjane Sartrapi
Achei o máximo ter essa visão do harém, que não chega para nós, ocidentais!
Além de me lembrar do livro Bordados (que uma pessoa já citou aqui nos comentários), pensei também no livro Calibã e a Bruxa, da Silvia Federici, quando ela conta sobre a origem da palavra fofoca. Olha que demais: https://www.youtube.com/watch?v=B1iqE885KacS
As nossas comunidades, nossos espaços entre mulheres, além de serem uma delícia, são poderosos e perigosos (para os homens). Por isso ele irão sempre dar um jeito de diminuí-los.