Muitos livros marcaram minha infância, mas nenhum tanto quanto Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Deve ter sido o presente mais precioso que ganhei da minha mãe. Eu amava as aventuras e aprendizados de Meg, Jo, Beth e Amy, as farras com Laurie e morria de ódio quando Amy queimava o manuscrito de Jo. Acima de tudo, compartilhava o sonho de Jo de um dia me tornar escritora. Acho que foi ela que me mostrou que escrever era possível.
Devo tê-lo lido e relido incontáveis vezes. Não amei a adaptação ao cinema com Winona Ryder – ao contrário da versão de 2019, de Greta Gerwig, que não tem defeitos. (Timothée Chalamet é um Laurie perfeito). Queria ter o cabelo curto de Jo, ser corajosa e talentosa como ela.
Havia anos que não tirava o livro da estante. Ele ficou como uma daquelas relíquias da infância, amado e surrado, esperando em casa pacientemente a hora de mudar de dona e ir para as mãos das minhas filhas. Mas agora, no mestrado, o escolhi para uma disciplina sobre romances de formação. A ideia era analisar um livro dentro desta ótica – e a tese para o artigo que estou escrevendo é de que Jo é a perfeita representante do Künstlerroman, o chamado romance de formação que narra o desenvolvimento de um artista.
Comecei a reler o livro com esta ótica. Contudo, fui descobrindo aos poucos que a experiência de ler Mulherzinhas já como mãe, e não mais como filha, é completamente diferente. Me pego admirando as atitudes de Mrs. March, a mãe das quatro meninas. Ainda adoro as cenas em que Jo aparece, mas presto um outro tipo de atenção a cada ensinamento da mãe delas.
A verdade é que o tempo passou. Não estou mais no lugar de Jo. Vejo as dores dela e sei que vão passar. Minhas próprias preocupações habitam o mesmo reino das de Mrs. March. Mais do que os amores e ambições de cada uma das irmãs, o que me pega nesta releitura é a sabedoria da mãe delas.
Mrs. March é anônima – seu nome se perdeu embaixo do manto do casamento. Mas ela está lá, em quase todos os capítulos, mostrando o caminho da maturidade para suas filhas. Quando Jo está nervosa, ela revela à filha seus próprios truques para lidar com os sentimentos em ebulição. Ao invés de gritar, ela se cala. Ela não age no calor do momento; espera até ter clareza do que sente e pensa para poder conversar com elas.
O contraste com as minhas próprias atitudes com as minhas meninas é brutal. Volta e meia, me vejo perdendo a cabeça. Falo o que não devo, uso uma palavra dura, dou uma bronca desnecessária. Grito, fico brava – a maior parte das vezes por besteira. Resolvi então adotar o estilo de maternidade de Mrs. March. Com carinho e firmeza. Se a minha paciência está por um triz, prefiro sair de perto e me acalmar. Aos poucos, fui sentindo o clima em casa desanuviar.
Quando Meg, Jo, Beth e Amy entram de férias e resolvem ficar de papo para o ar, Mrs. March permite – mas só para que as meninas aprendam sozinhas as lições que deseja dar. A ética do trabalho é um dos valores centrais do livro e ela quer que as filhas compreendam que uma vida composta apenas por prazeres é vazia. Ao fim de uma semana, nenhuma dela aguenta mais. Triunfante, Mrs. March diz que é bom ter responsabilidades e viver uma vida dedicada também aos outros.
Poucos dias depois de ler aquela passagem, encontrei a oportunidade perfeita de colocar as ideias em prática em casa. A Bia estava discutindo comigo, pedindo mais tempo de iPad. Cansei e disse a ela que quando ela só pedia coisas para si, ficava eternamente insatisfeita e não parávamos de brigar. O segredo para acabar com as discussões, ensinei, era que ela devia se perguntar o que podia fazer para os outros.
Poucas horas depois, ela teve a chance de fazê-lo. A Flor havia feito xixi fora do tapetinho e eu estava furiosa, dando uma bronca na cachorrinha enquanto limpava o chão. A Bia chegou junto e me perguntou como poderia ajudar. Segurou a sacola de lixo, pegou os produtos de limpeza. Tomou gosto pela coisa e resolveu ir colocar a mesa do jantar. Foi comigo por a irmã para dormir. Uma pequena transformação de bondade e carinho.
No jantar, conversamos sobre aquilo. Ela mesma reconheceu que se sentiu feliz de poder ajudar e cuidar dos outros. Eu me senti com a bola na frente do gol. “Está vendo só? Para ser feliz, o segredo é parar de pensar tanto em você mesma e olhar para os outros”, disse, com o máximo de gentileza que a minha vitória doméstica me permitiu. A minha frase não estava no livro, mas tenho certeza de que poderia fazer parte do repertório de Mrs. March.
Quem diria: só agora, depois de adulta, fui entender que Mulherzinhas pode ser também um guia de maternidade. O presente da minha mãe, dado originalmente lá em meados dos anos 1990, parece se tornar cada dia mais precioso.
Amei, que texto bonito.
Quando vi Gilmore Girls pela primeira vez, eu tinha 16 anos, como a Rory. Na segunda, tinha trinta e poucos, como a Lorelay. Foi TÃO diferente mudar a perspectiva! Revisitar histórias como mãe é um poço de descobertas.
Eu tambem adoro Mulherzinhas!!! E que delicia assistir essas pequenaa mudanças em sua filha!