Discuti recentemente sobre relacionamentos difíceis com a minha analista. Inevitável perguntar: será que o problema sou eu? Ela me disse algo que está martelando na minha cabeça desde então:
Nossos problemas não são só nossos. Eles acontecem dentro das relações com os outros. Por isso mesmo, nunca dá para culpar só uma pessoa.
Ela tem razão. É na dinâmica que a magia acontece - ou deixa de acontecer. Uma troca sempre exige que as duas partes estejam presentes e dispostas. Se é algo unilateral, por mais que você se esforce, não funciona. A culpa não é só de uma pessoa. (A não ser, é claro, que o fulano seja um psicopata).
Passei a semana com isso na cabeça. Quando dei de cara com a mesma reflexão no livro que estava lendo, culpei os mistérios da vida - ou melhor, agradeci. Durante uma conversa sobre religião em Uma tristeza infinita1, de Antônio Xerxenesky, uma personagem explica para o protagonista, o psicanalista Nicolas, o porque de ele nunca ter sentido a religião e a Bíblia em seu íntimo:
"O leitor precisa entregar uma parte de si para que a conversa seja possível".
Sem estarmos abertos, ela argumenta, é impossível acontecer uma conexão. Como conversar com quem não quer ouvir?
A literatura, esse lindo espelho da vida, funciona com as mesmas regras. Relacionamentos e livros não engatam pelo mesmo motivo: não adianta irmos fechados para eles.
A troca se dá sempre entre duas pessoas - e a literatura não poderia ser diferente. Ela é uma conversa entre o escritor, a obra e o leitor. Cada um enxerga no livro aquilo que consegue e que tem para dar, aquilo que ecoa com o seu íntimo. Para isso, deve haver entrega e escuta. Se não, ficamos presos ao lugar de apenas julgar - os livros e os outros.
A minha conversa com o livro de Xerxenesky continou. Um pouco adiante, Nicolas tenta explicar para a esposa - e para si mesmo - a sua vulnerabilidade com tristeza dos pacientes.
"Não é apenas o contexto externo, mas uma reação interior, única de cada psique, com o acontecimento exterior", ele diz.
Ou seja: nossas próprias reações são tão influenciadas pelos outros quanto por nós mesmos. O relacionamento do qual me queixava para a minha própria analista não funcionava não apenas pela dinâmica quebrada, mas também pelas minhas próprias expectativas e reações com o que se passava.
Ao final de Uma tristeza infinita, numa discussão sobre física quântica, um físico explica para o protagonista o funcionamento do universo. "O observador importa. Quem sabe, talvez o universo peça a nossa participação". Sinto o mesmo com a literatura. Um livro que detestei pode ser a leitura da vida de uma amiga. Os livros - e as pessoas - nos convidam para entregarmos nossas perspectivas e expectativas. Com eles, construímos juntos o sentido da leitura e da conversa.
Se eu não me dou, não tenho como tirar nada de lá.
Este foi um dos meus livros favoritos do ano e não paro de recomendá-lo para amigos, vizinhos, conhecidos ou não. O texto de hoje acabou servindo de preâmbulo para a lista das minhas leituras favoritas de 2022, que será enviada na sexta-feira. Fique de olho!
Que surpresa e que alegria infinita ler esse texto.
Este livro está a minha espera no kindle, já baixado, haha. Espero ler em breve.