Esta news está de recesso, mas decidi mandar para você alguns dos meus textos preferidos. Fica uma forma de te mandar um alô direto do meu descanso. Na edição de hoje, o texto de estreia do Vou te falar.
Numa fase particularmente ruim há alguns anos, fui à livraria com a minha mãe em busca de ajuda. Eu não sabia qual livro queria, mas tinha certeza de que acharia a resposta em algum deles (ou alguns). Minha mãe dava risada e dizia, Parece que você está na Porta da Esperança. Para mim, era algo semelhante ao quadro do Silvio Santos mesmo. Sempre acreditei que poderia encontrar a saída em um livro.
Recentemente, achei ela em um dos ensaios de “Falso Espelho”, de Jia Tolentino, chamado “O eu na internet”. Quando vi, estava falando do livro para todo mundo: analista, amigas, marido, mãe, acupunturista. Eu sou dessas mesmo. Comecei a usar as reflexões de Tolentino para explicar o meu burnout .
O que tive foram crises de ansiedade, muita insônia e angústia no momento em que entrava no segundo trimestre da minha gravidez. Aos poucos, lendo o livro de Tolentino, percebi: foi mais do que um esgotamento, um stress de performance – eu estava esgotada do eu que havia criado para trabalhar online.
Achava que era o excesso de performance diária, ininterrupta, que causou aquilo. Li “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, e encontrei uma pista:
“O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho”, diz. Afinal, estava produzindo de forma quase maníaca: Canal no YouTube, um perfil bombado no Instagram, entradas ao vivo diárias para uma rádio nacional, um podcast semanal e colunas para tantos veículos que eu já não contava mais – fora as lives semanais para meu público e outras para clientes, 3 livros publicados e mais alguns na esteira, projetos variados com marcas, cursos online...
“O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ser ele mesmo”.
E era isso que eu sentia – mas quando complementei esta leitura ao “Falso Espelho” de Tolentino, percebi: eu estava era exausta de ser a persona que inventara para a internet.
Quando criei o Finanças Femininas em 2012, a ideia era que ele seria um blog – eu nem assinava os conteúdos. Meu sonho era montar uma redação e ter um time de autoras, como um portal. No entanto, fui aos poucos percebendo que não era isso que a audiência queria. Em 2015, contratamos uma consultoria que entrevistou diversas leitoras e seguidoras, assim como todos os nossos clientes. O resultado foi unânime: todos queriam que eu aparecesse mais, que eu desse a cara para o negócio.
A partir daí, foi um caminho de exposição sem volta. “As pessoas querem saber quem você é”, me diziam. “Mostra mais a filha, a cachorrinha, o fim de semana”. “No mínimo, tem que ser 20 Stories por dia”. “A chave é mostrar o seu lifestyle”. “A ostentação é bacana porque gera um caráter aspiracional para o seu perfil, tá?”. Mas como toda boa introvertida, nunca foi óbvio fazer isso. Questionava absolutamente tudo o que pensava em postar, não havia a menor naturalidade. Odiava (e ainda odeio) assistir aos meus vídeos. Pedia a opinião do meu time de forma quase obsessiva para buscar um senso crítico real daquilo.
“Como um meio, a internet é definida por um incentivo de performance embutido. Na vida real, você pode seguir vivendo a sua vida e ser visível para as outras pessoas. Mas você não pode fazer isso e ser visível na internet – para as pessoas assistirem a você, você precisa atuar”.
Quando li isto, percebi que a discussão sobre stress de performance era muito maior do que eu imaginara. Não era apenas performance de volume de trabalho, mas sim algo muito mais doentio: performance para ser eu mesma – ou alguma versão disto.
Eu questionava e duvidava de tudo que postava. Comecei então a me editar. Este restaurante não cabe na persona. Isto é instagramável, aquilo não é. Se eu for na sorveteria, vai dar para postar algo legal. Este livro que li vale postar, aquele não. Este filme, esta viagem, este domingo. A performance era diária pois a cobrança – interna e externa – não tinha limite.
Nas páginas de “Falso Espelho”, fui entender que o que vivi foi o que Tolentino chama de uma “distensão do senso de identidade”. “O processo de calibrar o meu eu externo se tornou tão instintivo, tão automático, que eu perdi a capacidade de percebê-lo”, afirma ela em uma frase que eu poderia remover as aspas – ela é minha também. Aos poucos, fui deixando de ser eu mesma para me tornar “a Carol do Finanças Femininas”. Passei a rever as minhas escolhas do que fazer, ler, comer ou viver com base no que essa “Carol” faria.
Tolentino cita o livro “Representação do e una vida cotidiana”, escrito pelo sociólogo Erving Goffman em 1959. Nele, o autor trabalha uma teoria da identidade que é construída com base na encenação. Para cada interação humana, fazemos uma apresentação pensada para a nossa audiência. O que Goffman não poderia imaginar é que passaríamos a viver esta performance 24h por dia – mesmo quando não há ninguém conosco. A persona se torna o eu, neste mundo de autovigilância da internet
Mas o que acontece quando realizamos esta performance para ganhar mais seguidores? Para fechar mais contratos com marcas? Para aumentar o seu engajamento, gerar mais cliques para as marcas, vender mais cursos? O seu senso de valor passa a ser dependente do número de likes, de views, de participantes simultâneos da sua live. Neste mundo, perdi até mesmo a capacidade de avaliar o conteúdo do meu trabalho – afinal, tudo o que importava eram as métricas. Elas já diziam se o trabalho fora bom ou não.
E é por isso que estamos aqui hoje. Eu queria construir um lugar onde pudesse viver a autenticidade do meu eu, sem edição. Sempre acreditei no poder da escrita e agora aposto nele para poder viver a minha multiplicidade com vulnerabilidade. Como neste texto aqui.
Então seja bem-vinde. Puxa uma cadeira, pega um chazinho, quero que se sinta em casa. E me conta o que achou? Vou amar bater-papo com você.
🤷♀️ Ainda não está inscrite? Então aperta aqui:
Simplesmente TUDO esse texto! E eu estudei (sempre conectadas) o Goffman, ele falava muito sobre máscaras sociais há décadas e acho incrível como é contemporâneo - assim como o Simmel, que falava sobre o "desejo de parecer", também super atual.
Acho que a edição da personalidade sempre existiu, inclusive alguns imperativos (especialmente sobre gestos e roupas), mas hoje a intensidade e o acúmulo de imposições foram muito além - e qual será esse limite? Sinto que até quando as pessoas querem parecer despretensiosas elas seguem algum modelo tb, então acho que cada pessoa vai entender até que ponto faz sentido e é suportável entrar nesses papéis. Só que muita gente percebe tarde demais, quando já dissociou de tudo, porque as bolhas vão distorcendo o mundo mesmo né. PODERIA FALAR DISSO SOBRE HORAS
Beijos e obrigada por esse texto!
Nossa! Que textão! Minha cabeça tá explodindo! Impossível desver tudo isso!
(E novos livros pra minha lista sem fim!)