Alguns filmes e livros especiais sempre nos levantam novas questões a cada vez que os revisitamos. Soul, da Pixar e Disney, é um desses. Decidi assistir de novo com a minha filha na semana passada e uma cena me pegou muito (sem spoilers por aqui, tá?).
Uma das personagens principais é engolida pela sua própria angústia e vai para um lugar escuro, dentro dela mesma, no qual todos os seus fantasmas aparecem para cobrá-la. Todas as dúvidas, os questionamentos, as inseguranças estão ali, agigantadas pela angústia e se transformam em cobranças infindáveis. Ali tem material de sobra para uma eternidade de obsessões.
A Bia queria entender melhor a cena e pausamos para conversar. Expliquei a ela sobre as cobranças que nós mesmos nos fazemos – e que muitas vezes nem correspondem à cobrança externa que nos é feita. O filme mostra bem isso: nenhum daqueles monstros que atormentam a personagem havia sido tão duro e cruel com ela na realidade.
- Você se cobra muito, filha? – perguntei, meio que já sabendo a resposta, mas querendo aproveitar aquela oportunidade preciosa para conversar.
- MUITO – ela me confessou.
Falamos sobre angústias, medos e, ao final do filme, ela estava mais em paz consigo. Me lembrei de uma frase que ouvi da Anne Lamott recentemente, de que os medos expressados permitem que o alívio venha.
Quando fui dormir, não conseguia parar de pensar na questão das cobranças internas e externas. Este foi assunto também de uma conversa com uma amiga, depois que ela leu a newsletter sobre os limites e a história da Simone Biles. Então jogo aqui a pergunta para você também entrar na conversa: o que é pior para você, as cobranças que vêm de fora ou as que nós mesmos criamos?
Acredito que a resposta de cada um depende muito da sua história, personalidade e circunstâncias. Mas no meu caso, consigo dizer sem precisar pensar duas vezes: as cobranças internas são muito piores.
Depois de décadas de análise (sem exagero, tá, é só uma constatação mesmo), consegui enxergar a forma como internalizei as cobranças que vivi durante boa parte da minha vida. Eu fui bem cobrada durante a infância e a adolescência. Esportes, escola, amigos, atividades extracurriculares, leituras, programação de férias... tudo podia virar um ponto de cobrança.
Reconheço o privilégio de ter tanto acesso e mesmo os ganhos que tive com todas aquelas cobranças. Muitas das oportunidades que surgiram na minha vida e que eu pude agarrar têm todas a mesma raiz: a disciplina que construí com base em todas as cobranças que recebi.
Parece lindo e, por muito tempo, considerei este modelo como manual de mãe. Cobre seus filhos e eles poderão construir a vida que quiserem.
Eu não sei se o problema foi o excesso de cobranças ou a minha forma de lidar com tudo isso. Só sei que chegou um ponto que eu não precisei mais de ninguém me cobrando nada – eu virei a mestre da autocobrança. A vida se encheu de “eu tenho que”. O termo técnico, me diz meu sogro psicanalista, é a introjeção.
Conversei com uma amiga psicanalista, a Helena Cunha de Ciero, sobre a questão e ela levantou um ponto importante: a cobrança dos pais que a gente internaliza tem menos a ver com o que nossos pais querem de nós e mais a ver com o que imaginamos que eles querem. “Só que além de ser uma mentira, essa cobrança interna vira uma prisão”, ela me disse. No fundo, a cobrança interna tem a ver com um ideal que criamos, um desejo que os outros nos enxerguem de determinada forma, ela me explica. Tenho uma imagem ideal de mim e quero que todo mundo me veja daquele jeito.
Nestes últimos tempos, como vocês podem ver pelas últimas newsletters, comecei a desconstruir muitas destas crenças. E pela primeira vez, consegui enxergar como aquela cobrança interna havia passado do ponto e me tornado refém de tantas ideias que não faziam mais sentido.
“Cobrança interna deixa a pessoa rígida, ela acha que só da para ser feliz se for daquele jeito. E ali você fica correndo sempre atrás de um ideal cada vez maior de si mesma – ideal esse que só aumenta de tamanho e nunca dá para alcançar”, reflete Helena.
Aos poucos, venho desfazendo estas crenças e esta rigidez como quem puxa um novelo de lã todo embolado e encara o desafio nó por nó. E enquanto desfaço tudo isso, percebo como não quero passar este modelo adiante. O meu desafio agora é duplo: eliminar as cobranças internas e passar a viver uma vida mais livre, ao mesmo tempo que evito cria-las nas minhas filhas.
Como fazer isso? Pergunto para a Helena e ela me fala sobre o improviso. Não existe fórmula, nem receita de bolo – a única saída é você se arriscar a viver do jeito que gostaria, a dizer e fazer o que passa na sua cabeça. Liberdade, autenticidade e espontaneidade podem ser belos antídotos.
Isso me lembra a fala de Brené Brown, doutora em serviço social e autora de livros incríveis como “A Arte da imperfeição”, fala o seguinte:
“Para assumir a verdade sobre quem somos, de onde viemos, em que acreditamos e sobre a natureza imperfeita da nossa vida, precisamos estar dispostos a pegar leve nas cobranças e apreciar a beleza de nossas falhas e imperfeições; precisamos ser mais amorosos e receptivos com nós mesmos e com os outros; e precisamos conversar conosco da mesma maneira que conversamos com alguém que amamos”.
Tenho vivido, nos últimos meses, uma libertação gradual desta autocobrança. A Helena me diz que esta é a palavra certa: libertação. “Não corresponder a um ideal pode ser libertador, pois muitas vezes é só assim que podemos aprender a sermos quem somos”. Sinto que quanto mais entendo minha própria verdade, mais fácil é de abrir mão de crenças e cobranças que não fazem mais sentido.
Enquanto terminava de escrever este texto, ela me manda uma mensagem no WhatsApp: “Existe o ideal e existe o possível. O possível não é um fracasso, é o que você deu conta. E dar conta é bastante grandioso, se você pensar na força dessa palavra”.
Então respiro fundo e aceito: sou a Carolina possível hoje – e isso é grandioso.
😰 E pra você, como é lidar com as cobranças?
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