Acabei de ler Lar em chamas1, de Kamila Shamsie, para o meu mestrado e um ponto me chamou a atenção. Um dos personagens-chave, Parvaiz, é técnico de som e tem um ouvido muito mais apurado que a média das pessoas. Em nossa análise em aula da obra, começamos a discutir a diferença entre o olhar e ouvir o outro – e como eles nos permitem formas opostas de compreender quem ele (ou ela) é.
Quando eu te vejo, julgo pelos meus próprios critérios. Seu corpo, suas roupas, seu estilo, seu cabelo. Seu modo de andar, sua voz. Suas posses, sua bolsa, seu carro – e tudo o que você mostra da sua vida no feed do Instagram. Todos são símbolos que eu interpreto de acordo com as minhas expectativas e valores.
Por outro lado, quando te escuto, sou convidada a sair de dentro de mim e te habitar por alguns momentos. Cria-se a capacidade de conexão e compreensão. Não é uma fórmula mágica ou panaceia, mas conseguir de fato ouvir o outro é a semente da empatia.
Vivemos no mundo das imagens. Fotos, stories e reels nos mostram o tempo todo o lado externo da vida do outro. Pulamos as legendas e assistimos aos vídeos sem som. Trocamos as palavras por emojis. E não é de hoje isso – a revista mais vendida do País sempre foi a Veja (lá nos tempos dos maias e dos astecas). Confiamos nossas percepções e julgamos com base na nossa visão do mundo. É uma sociedade de aparências, selfies e ostentação. Antes de comer, precisamos postar uma foto do prato.
Não à toa, nossos preconceitos são visuais. A cor de pele divide e segrega. Quem não se parece comigo, bom sujeito não é. Olhamos e julgamos de acordo com nossas expectativas e com as histórias que ouvimos sobre o mundo. Se só aprendemos as histórias do nosso próprio grupo, nunca temos a oportunidade de ouvir o outro lado delas.
Penso nisso enquanto me lembro dos meus livros favoritos. Tenho uma tendência de querer ler livros com protagonistas nos quais me vejo (ou gostaria de me ver). Mulheres, escritoras, paulistas.
Mas é quando leio sobre protagonistas completamente distantes da minha realidade que a minha visão de mundo se expande. Parece aquelas cenas de filme quando o personagem toma uma droga e o mundo se acelera e abre em direções e cores inesperadas. Um pouco como tomar a pílula vermelha de Matrix.
Eis o poder da literatura: ela nos permite escutar aqueles cujas vozes não chegam até nós. Sair da bolha literária tem um impacto que vai muito além das obras que decoram as estantes. Aprendemos sobre o outro, ouvimos as suas histórias, entendemos o seu sentir e agir, encontramos ali a sua humanidade.
Se não fosse pelo mestrado, dificilmente teria escolhido um livro sobre filhos de um terrorista, pelo menos neste momento. Tantos outros na minha lista antes, tantas indicações, tantos novos lançamentos incensados, e as minhas próprias preferências me guiando para escolher obras onde eu encontrasse um pouquinho de mim escondido naquelas páginas. Não tem nada de errado com isso. Mas quando você sai da bolha, aceita o convite para fazer o seu mundo crescer. E isso é maravilhoso.
Leitor(a) desta news tem desconto de 15% com o cupom VOUTEFALAR na Livraria Dois Pontos (e eu não ganho nada com isso, tá?).
Me fez lembrar da célebre frase de Helen Keller: "A cegueira nos afasta das coisas, a surdez nos afasta das pessoas". Um beijo,
Que texto bom! O meu preferido do blog até agora...