Gosto de ler a obra de escritoras. Não é nada excludente contra os homens, mas sim um reconhecimento de que as vozes das mulheres foram abafadas ao longo da história. Que difícil para uma mulher se tornar escritora, ter sua obra publicada, lida, discutida, estudada.
Não foi à toa que tantas optaram por pseudônimos masculinos – algo que aconteceu não só na Inglaterra vitoriana com Middlemarch, de George Eliot Mary Anne Evans, talvez o mais importante livro já escrito no país. Em pleno século 20, J.K. Rolling precisou se esconder atrás das suas iniciais, assim como S.E. Hinton. Ninguém achava que os livros delas iriam vender.
“Eu arriscaria dizer que o tal Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assinar, era muitas vezes uma mulher”, diz Virginia Woolf em Um teto todo seu, ensaio em que ela fala sobre as mulheres na literatura.
Comecei a me dar conta disso aos poucos. Na escola, a maioria esmagadora dos livros que líamos eram de homens. Me acostumei a encontrar genialidade apenas em Machados, Fiódors, Gabrieis e companhia. Descobrir Clarice Lispector foi, correndo o risco de usar uma palavra tão batida, uma revelação.
Precisei de décadas para compreender que o cânone da literatura, essa palavrinha irritante, era apenas um clube do bolinha. Críticos do sexo masculino dando palco e estrelinha para autores homens. Ler mulheres é também um ato de rebeldia.
No mestrado, comecei a estudar as diversas teorias críticas que são como lentes para enxergar e analisar um texto. Uma delas caiu no meu gosto – o feminismo. Ela faz parte do movimento político feminista e nos ajuda a entender a literatura como uma forma de “expor estereótipos machistas, distorções e omissões na literatura dominada por homens, (...) estudar a criatividade feminina (...), examinar as forças que moldam as vidas, literatura e crítica das mulheres (...) e criar novas ideias e papeis para as mulheres, incluindo novos arranjos institucionais”, diz o historiador de crítica literária Vincent B. Leitch1.
Tenho pensado nisso enquanto leio O acontecimento, de Annie Ernaux, para o nosso clube do livro. Ernaux, ganhadora do Nobel de Literatura deste ano, se recusa a omitir detalhes sobre o aborto clandestino que realizou nos anos 1960. As descrições são brutais, mas foram a primeira vez que me deparei com um retrato fiel do que de fato acontece no aborto. É uma educação.
Sem apagar essa experiência, ela dá voz a todas as mulheres que vieram antes dela – e ilumina o caminho de todas que virão depois. Mostra a importância da legalização do aborto sem precisar panfletar. O acontecimento grita.
Ao começar a compreender, aos poucos, a teoria feminista, olho para todos os livros que li de mulheres de outra forma. Todas as vozes que nos contam sobre suas vidas, amores, pressões, cultura. Sobre trabalho, casamento, maternidade, exclusão, machismo e preconceito de formas que um homem, por mais genial que seja, não consegue alcançar.
Ler mulheres – seja você um homem ou uma mulher – é abrir a cortina para enxergar o que se passa atrás do palco. Atrás da performance do dia a dia, da doce ilusão de que damos conta de tudo, é possível testemunhar as pressões invisíveis, as dores, as motivações. A literatura nos permite entender como o outro pensa e sente, um acesso direto ao consciente do personagem que nenhuma outra forma de arte nos dá.
Não existe uma leitura feminina – assim como tampouco existe uma literatura universal. O que existem são cada vez mais mulheres que nos falam de suas vidas, experiências, sonhos e dores. Ler um livro escrito por uma mulher é, também, uma forma de trabalhar para mudar a sociedade. (Me deixa, essa semana estou otimista).
Estamos lendo O acontecimento para o nosso clube do livro. Vem, que ainda dá tempo! Para entrar no clube, clique no botão abaixo e escolha a opção “upgrade to paid":
Estou apenas tateando no universo da teoria crítica e começando um mergulho no universo de Hélène Cixous, Judith Butler, bell hooks e tantas outras. Trouxe esta frase de um homem pois, para mim, resume de forma clara os princípios da teoria. Se você tiver indicações, textos, ideias, vem trocar aqui comigo!
Oi, Carol! Não sei se em seus estudos você já passou pela expressão “Female Gaze”. Após quase 50 anos do termo ter sido cunhado, vejo-o sendo sendo cada vez mais usado em diferentes âmbitos, inclusive no planejamento urbano. Há a defesa de que as cidades feitas por mulheres são mais seguras e inclusivas - e eu acredito nisso. Recentemente, li que a nossa crença de que mulheres não viajam muito no século XVIII/XIX na verdade está sendo refutada. Não é que elas não viajassem, mas poucos são os relatos de viagens de mulheres que foram documentados/publicados. Ou seja, ainda há muito a ser investigado nesta área - o que, na minha opinião, abre espaço para muitos achados interessantes.
Adorei o texto de hoje! :)
Carol, este ano li, meio que sem querer, muitas autoras femininas, a maioria dos livros em 1ª pessoa, mas foi apenas quando li homens narrando em primeira pessoa, que percebi que a identificação com o personagem não rolava. Mais que isso, cheguei a sentir raiva ou desprezo por eles. Estou ate pensando em ler Dom Casmurro agora na vida adulta ( li na escola, há mais de 20 anos), só pra saber como vou me sentir com relação a Bentinho. Hahaha